domingo, 11 de agosto de 2013

Café Europa apresenta: CAMERATA MEDIOLANENSE - "Vertute, Honor, Bellezza". CD, 2013, Auerbach Tonträger

Algures nos anos do pós-guerra, a canção popular cresceu, tornou-se predominantemente profunda, filosófica, cheia de significado para uma nova maneira de encarar o mundo, que se reconstruía após seis anos de loucura e carnificina. Do início dos anos 50 ao final dos anos 60, foram duas décadas de ascese espiritual, a princípio decadente, por causa do derrotismo Beatnik, mas gradualmente mais positiva por afirmar valores que implicavam a esperança numa nova Renascença para a Humanidade.   

Nessa altura não era de estranhar ver poetas e compositores de reconhecido gabarito a escrever para outros, ou mesmo ver grupos e cantores que abertamente se entregavam, de forma quase feudal, ao mester de cantar a obra maior de alguns iluminados ou doutros simplesmente talentosos. Vimos isso nos californianos Byrds, que alicerçaram o seu boom inicial nas canções quase perfeitas de Dylan e Pete Seeger, vimos isso na obsessão catártica de Scott Walker pelo cancioneiro de Jacques Brel ou ainda na forma como os Love tratavam as gemas criadas por Burt Baccharach. Fazer desse lado “muso-vassálico” uma forma de vida e carreira seria altamente difícil e potencialmente descaracterizador da identidade própria. Daí que se conclua que quando uma banda o consegue, durante praticamente toda a sua existência, estamos deveras em presença de um talento muito alto. Ainda mais quando se sabe que os patronos viveram entre os séculos XIII e XIV e se chamavam nada menos que Dante Allighieri e Francesco Petrarca.
Os italianos CAMERATA MEDIOLANENSE têm-no feito com rara mestria e em 2013 estão de volta, após longo interregno, com o álbum “Vertute, Honor, Belleza”, baseado no cancioneiro de Petrarca e destaque central da emissão desta noite no Café Europa.
Dizem os registos oficiais em torno da CAMERATA MEDIOLANENSE, que este disco está a ser trabalhado há cinco anos – no entanto o último álbum de originais foi lançado há 15 !!! Todo este espaço de tempo entre “Madrigali” de boa memória e este “Vertute Honor Bellezza”, foi passado como que em suspensão criogénica, isto é, os elementos fixos do grupo dedicaram-se obviamente às suas atividades profissionais, mas A CAMERATA, sempre sob a orientação da musicóloga, investigadora e multi-instrumentista Elena Previdi, foi lançando singles e ep’s, com a colaboração próxima da velha equipa que inclui os percussionistas e também multi-intrumentistas Trevor, Manuel Aroldi e Marco Colombo, com o acréscimo da voz lírica de Daniela Bedeski, elemento móvel mas fundamental da CAMERATA MEDIOLANENSE, ao longo dos anos.
Musicalmente, a mudança no trabalho deste grupo reflete talvez um pouco do que utopicamente se pode chamar “estética clássica da eternidade” – raramente soa diferente, mas de tão grandiosa que é, a sua imutabilidade permanece o único veículo pelo qual se fazem anunciar junto das plateias da Europa e do mundo. Persistem os motivos renascentistas e neo-clássicos, as percussões de batalha, europeias mas quase tribais, os teclados de fundo e de base que desenham profundidades em perspetiva que nos transportam ao recato de séculos ou nos empurram para a frente da imaginação, mesmo quando soam pop no tema “99 altri perfecti”, que aqui reaparece, depois de ter saído em ep em finais de 2011, neste caso antecedido pela cerimonial “Canzone all Italia”, que prepara e completa o primeiro grande bloco alto neste novo álbum, depois de “Voi Ch’ascoltate” e “Dolci Ire”, os quais abrem com mistério e a grandiosidade da música vocal italiana, eivados de um espírito renascentista, adensado por coros e percussões festivas e marciais.
“Fragmento XXXV” é apenas um intermezzo ambiental-poético, que introduz o solene “Solo et Pensoso”, recheado de movimentos ascendentes e descendentes dos sintetizadores manipulados por Elena Previdi – aliás, este álbum é marcado pela proliferação de sons de sintetizador, paradoxalmente na urdidura musical de um grupo que prima pela abordagem renascentista. Mas, neste caso, mais uma vez, aquilo que soaria desajeitado e desproporcionado noutro qualquer grupo de neofolk, surge aqui com uma iluminação sonora capaz de nos transmitir visões de um passado desconhecido ou de um futuro ausente, como acontece concretamente no sétimo tema, “Tremo et Taccio”, que termina com uma harmonia vocal de segundos que gostaríamos de ouvir por mais tempo…
A mesma toada de sintetizadores regressa logo a seguir para o estranho e bastante ambiental/atmosférico “Vago Augelletto”, que nos parece outra peça introdutória, mas que logo se desdobra em bucolismo da Idade de Ouro, com a voz de Daniela Bedeski em primeiro plano. Mas não é erro julgar este momento como preambular da sequência do alinhamento do álbum – segue-se “Vergine Bella”, que é também o novo single, e o qual encerra a trilogia dedicada a Petrarca, depois da anterior, em honra do “Inferno” de Dante. Estes dois temas formam o segundo planalto perfeito neste “Vertute, Honor, Bellezza” dos CAMERATA MEDIOLANENSE, duas suites que parecem posicionar-se estrategicamente na composição, como “beacons” orientadores do trabalho de ascese do quinteto milanês, que neste álbum é também ajudado literalmente por dezenas de amigos que quiseram dar o seu contributo vocal e instrumental.

Num ano tão conturbado, não só política como economicamente, não só social como sempre humanamente, nesta “Europa XXI” em erosão, que se esboroa de valores por causa de outros apenas tabeláveis para interesses guardados, existir um disco como este, poderia ser entendido como um sinal de boa-esperança, cuja realização depende apenas do nosso reconhecimento coletivo. E enquanto isso não acontece, resta-nos a expressão sentida desse grande desejo, talvez o “Lo Gran Desire” emocionante que anuncia o final do álbum e que começa como pesadelo sónico antes de explodir em grandiosa marcha technopop neo-clássica – outro dos temas que aqui gostaríamos de escutar alongados.
O álbum encerra com “O Mia Stella”, interessante mas talvez só um pouco incaracterístico, nos seus laivos de opereta gótica, embora sempre com a atenuante de ter os coros de Daniela Bedeski e Elena Previdi, que conduzem o tema a uma apoteose de baile de máscaras, e “Quest’Anima Gentile” sela o disco com um momento vocal belíssimo do jovem Matteo Benedini, o pequeno amigo da Camerata que surge em primeiro plano na fotografia de família que adorna o livreto interior, de novo em dueto com a luminosidade cristalina da voz de Daniela.

Afinal de contas, acabamos por perceber porque é que passámos esta revista a falar de Renascença, Esperança e Idade de Ouro. Este é um dos trabalhos de música popular fundamentais deste ano e os valores petrarquistas que canta não são necessariamente cognatos das 3 graças que os senhores do avental proclamam – a CAMERATA MEDIOLANENSE apenas cumpriu aquilo que se propôs fazer – mostrar virtude, honra e beleza. Foram 15 anos de espera por um trabalho maior que se justificaram em pleno, se bem que nestas coisas das artes maiores, da música e da poesia, dos génios e dos talentos, o tempo é sem dúvida aquilo que menos importa. 

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