quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Café Europa apresenta: DUNCAN EVANS "Lodestone" (2013)

Passámos as nossas vidas a ouvir música – quase sempre na cidade, aos milhares, fomos colecionando evidências da totalidade das músicas que nos ligavam a alma. Quase invariavelmente, a eletricidade esteve presente como energia que alimentava os meios geradores da música, assim como os veículos da sua transmissão. E do rock se fez prog, e do prog se passou ao hard and heavy, e ao punk, e ao industrial, e ao dark-ambient, e a todos os rótulos possíveis e imaginários que se podem colar numa massa de sons que provêm todos eles das vivências na cidade, e do uso e abuso talvez pouco saudável da eletricidade. E malgrado as contas ao fim do mês continuem sempre a exibir a agravante felonia de quem pretende distribuir progresso contra a hipoteca da vida e alma dos cidadãos, a música elétrica vai continuar a fazer parte das nossas vidas. Então, questionar-se-á o ouvinte, não há nunca uma trégua para os ouvidos do melómano, nunca um momento de guarda baixa que nos reconcilie com os sons naturais?
A resposta é simples e direta – também ainda não nos cansámos da canção folk ocidental, aquela que nos faz reencontrar tradição e natureza, mais para estes lados do Atlântico. No século XXI, que em pouco ou nada melhorou a existência humana, continua a existir o género musical que é, transversalmente, a fonte de todas os outros, e persistem os perpetuadores da Tradição da Canção, que com a sageza que ecoa já de muitos séculos, encontram sempre formas de nos surpreender a todos. É o caso de DUNCAN EVANS, guitarrista dos post-metalers britânicos A Forest of Stars, no seu álbum “Lodestone”.
É fortemente motivante ouvir um disco inteiro sob a égide da mais pura canção folk, da melhor cepa que a tradição britânica pode oferecer. DUNCAN EVANS é ainda jovem e de futuro poderá dar-nos ainda melhores trabalhos, consolidando uma vertente mais pessoal, fora da influência dos A Forest of Stars, que só por si constituem um caso de originalidade na cena post-metal do Reino Unido. Aliás a tag post-metal só pode querer dizer “para além” e não “após”, porque na realidade só ´da continuidade a um ramo do rock que é praticamente cinquentenário.
O mesmo faz DUNCAN neste “Lodestone” – diga-se logo que a grande referência histórica é a de Richard Thompson. As guitarras são tão impressionantemente fidedignas que até Bob Mould – um dos mais reputados filhos espirituais de Thompson – nunca conseguiu tal proeza. E mesmo a expressão com que DUNCAN EVANS pontua as frases que canta, não anda longe da retórica trovadoresca rufia do ex - testa de ferro da Fairport Convention, embora se demarque do seu timbre. Curiosamente, há qualquer coisa de Boy George na marca tímbrica de DUNCAN EVANS, o que só acresce em entrega quase soul ao mester das suas canções – aliás se cruzarmos estas duas principais referências, poderíamos até chegar perto do conceito celtic soul de Van Morrison, não fosse a chancela deste demasiado negra para ser compaginada no apuro melódico essencialmente folk de EVANS.
Feitas as apresentações, partamos à descoberta de “Lodestone”. “Bird of Prey” arranca com uma introdução de guitarras acústicas perfeita e rápida que dá imediatamente o tom que governará todo o trabalho – execução exemplar, perfeccionismo apaixonado e total observância de cânones conhecidos, aceites e não esquecidos. É um regresso saudável a 1969, a um dinamismo criativo da canção folk que não se importa de agradar ao mainstream mas sabe equilibrar-se muito bem em cima da cerca – é arte popular, artesanato impecavelmente acabado que brilha até no escuro. Uma canção sobre o desejo, servindo-se de artifícios poéticos plenos de animismos e simbologias que assomam na esquina do tempo desde a mais remota tradição oral e dos mais antigos escritos pagãos. É por isso mesmo um momento perfeito, até porque se tem de imediato a sensação de se estar em casa – não aqui intervenções alienígenas.
Outro momento alto deste disco de estreia de DUNCAN EVANS será “Forever So” – um tema de revolta e lamento que tanto pode dizer respeito a um alistamento em corpo militar de elite, ou a uma companhia de mineiros ou simplesmente a um serviço cívico; no fim do dia, o sujeito poético acaba desiludido e acusado pelo corpo, arcando com as culpas de outro, porque é preciso encontrar culpados, mesmo que em tempos lhe tenham procurado inculcar o espírito de pertença, o espírito de batalhão, o da unidade … musicalmente, “Forever So” é uma barragem acústica de ira dedilhada misturada com riffs e uns arpejos elétricos lá ao fundo, cheios de beleza, que mais uma vez perfilam Evans nas fileiras dos herdeiros estilísticos de Richard Thompson – que por sinal ainda está bem vivo e recomenda-se.
“The Old Lies” quase nem nos deixa recuperar o fôlego – e estamos em crer que se trata de um tema sobre o que aconteceu em Londres e no Reino Unido em geral, no Verão de 2011. Algumas das palavras aparecem riscadas, como censuradas à velha maneira das cartas previamente lidas no Exército, deixando apenas perceber algumas letras. E o tema avança como que desmascarando as razões pelas quais foi preciso encobrir o que levou a tais manifestações de desespero e oportunismo ganancioso.
“The Curtain Falls Down” faz suite com “The Sailor Boy”, dois temas que arrastam consigo quaisquer reticências de dúvida que pudessem estar a ser guardadas pelo ouvinte, em como este é um dos mais importantes discos do ano passado.
“The Curtain Falls” trata de uma visão apocalíptica do sistema em que vivemos – do estertor do capitalismo que consigo vai demolir grande parte do mundo que se construiu; há um certo estoicismo suicida nas palavras de DUNCAN EVANS que por segundos nos fazem desviar os olhos do libreto e pensar … “The Sailor Boy” é uma história setecentista, plena de contornos do arco-da-velha, decadente e sanguinolenta, uma história de mancebia e infidelidade que começa e acaba mal, talvez até com um pequeno toque de escárnio à maneira de um Hunderby.
No fundo, uma revisitação das temáticas folk obscuras que povoavam a mente de Richard Thompson nos idos de ‘70 e que no presente talvez só Andrew King tenha traquejo para assumir as rédeas. O álbum fecha de seguida com mais um par de temas: “Cold World”, numa exploração de criação mais intimista, que tal como o segundo tema que ignorámos há pouco – “Cindy” – passam por ser os momentos mais indiferentes de “Lodestone”, embora nada devam ao lirismo de qualidade que está indubitavelmente marcado nas impressões digitais de DUNCAN EVANS. No entanto, é com “Girl on the Hill” que a chave de ouro está para guardar todos os mistérios e segredos do coração que irradiam através das frinchas de cofre ferrugento que este álbum parece constituir. Um longo tema de acordes, dobros e solos arrebatados que gritam pelo nome de Richard Thompson em todas as secções, mas da tal forma que só DUNCAN EVANS, até ao momento, é capaz de fazer – apropriando-se estilisticamente de um legado demasiado precioso para cair no esquecimento, demasiado representativo de uma cultura popular e, quer se goste ou não, Nacional.
Andámos todos estes anos navegando nas águas glaucas do dark-folk, e com razão, porque se nas últimas três décadas causas houve para resistir, aquela que procurou restituir a faceta de autenticidade à música popular terá sido a mais elevada, para não dizer a mais nobre. Esses heróis e cavaleiros dificilmente verão estandartes e pavilhões mais festivos que as tavernas onde se reencontram com a sua gente. E nisso nada de mal haverá. É uma glória de outra estirpe, uma vitória pessoal que vale como conto cautelar. Mas na década em que as estrelas de plástico, criadas pela “Great Whore” que é a mega-indústria musical pop anglo-americana, rebentam a imagem e a cabeça de encontro ao gradeamento iluminado dos media, capazes, sabemos lá, de revelar enfim qual o porquê da sua aberrante existência, que surja da bruma eterna das terras de Merlin e Artur, um bardo chamado Duncan Evans, será talvez sinal de que as grandes plateias poderão de novo reaprender a ouvir música e canções verdadeiras, autênticas como a pedra dos seus antigos templos. 

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