quinta-feira, 27 de março de 2014

Cafe Europa apresenta: Sopor Aeternus & The Ensemble Of Shadows ‎– "Poetica", Apocalyptic Vision, 2013

O colectivo gótico alemão SOPOR AETERNUS AND THE ENSEMBLE OF SHADOWS lançou no outono passado mais um disco de originais, o décimo primeiro para ser mais exacto, “Poetica”, todo ele dedicado à poesia de Edgar Allan Poe, e mais concretamente, à colectânea “The Raven and Other Poems”, ousadia já várias vezes arriscada por gente tão díspar como Alan Parsons, os Propaganda, os Manilla Road e Lou Reed, entre muitos outros. O grande vulto da literatura norte-americana não é propriamente novidade na discografia do grupo de Anna Varney Cantodea – antes já tinha sido abordada a sua poesia em discos como “Todeswunsch” e “Dead Lovers Sarabande”, mas apenas em temas soltos. Neste “Poetica” encontramos toda uma recolha que se encaixa na perfeição na estética desta estranha agremiação germânica que há pelo menos um quarto de século se inscreveu na órbita saturnina da música moderna de intensos (e óbvios) traços góticos.
Embora as edições dos SOPOR AETERNUS se tornem cada vez mais alvo da atenção dos grandes colecionadores pela exuberância do seu acabamento formal, também é certo que os lançamentos se tornaram ultimamente mais esparsos. Se lembrarmos discos essenciais que constituem memória recente no acervo criativo dos SOPOR AETERNUS, tais como “La Chambre D’Écho” ou “Les Fleurs du Mal”, apercebemo-nos de que muita coisa se passou entretanto e de que estes trabalhos fulcrais no panorama europeu estão já a alguns anos de distância, embora a sua pertinência se mantenha inalterável.
A riqueza musical dos SOPOR AETERNUS pode traduzir-se em duas palavras – morbidez e sensualidade. Conquanto que esta associação possa soar perigosa ou passível de grosseiros mal-entendidos, terá sido esta a constante ao longo destes anos todos. Anna Varney é mestre em compor narrativas mediúnicas, como se tudo o que envolve as suas criações se passasse sempre entre o sofrimento do presente obscuro e uma inquietude na eternidade do além-túmulo que remete de imediato para a ideia de um constante e avassalador estado de suspensão de alma, de punição e de limbo. No entanto, e apesar da, por vezes, sufocante atmosfera desenvolvida, parece sempre existir, digamos, não uma esperança, mas um consolo masoquista no eterno sofrimento dos danados. A alma humana tem essa prodigiosa elasticidade de se habituar ao padecimento de uma vida e para além dela, e nesse campo elísio Anna Varney está entre os seus melhores intérpretes.
Ao escolher a referência por excelência da poesia feita elegia como Edgar Alan Poe, basicamente a entidade geradora da noção do conto e do poema góticos, os SOPOR AETERNUS não podiam estar mais a jogar “em casa” – e assim os temas fluem naturais, quase imediatos, na associação música-letra. Com efeito, e após o intro de pouco mais de um minuto, com a primeira parte de “Oblong Box”, tema recorrente neste álbum mas sem palavras, até porque não era originalmente um poema mas um conto de Poe, surge a adaptação de “Dreamland”.
Assim que soam as primeiras notas e num andamento lento, somos imediatamente confrontados com a ambiência clássica de uma ghoststory.Há madeiras a ranger, há ventos a uivar, enquanto os teclados lúgubres acompanham o incauto e mesmerizado visitante do poema incluso em “The Raven and Other Poems” por essas paisagens plenas de contrastes que arrastam a alma para um deslumbramento mórbido.
São quase quinze minutos que podem ser escutados em loop, tal a envolvente conseguida, rara proeza de vates e bardos – tornar o tempo de uma longa peça quase impercetível para o ouvido mundano, habituado a navegar em vetustas jangadas da imediatez. Sendo apenas o segundo tema do alinhamento, e tendo em conta que os quase 80 minutos aproveitáveis do formato cd foram inteiramente preenchidos com os onze temas, constatamos facilmente que outras extensas peças nos cruzarão o caminho nesta descida aos mais deslumbrantes abismos da imaginação poética. Tal como no título…
A versão seguinte é a do fantástico “ElDorado”, a história do cavaleiro que envelhece na senda do mítico lugar até que, calvo e quase esgotado, encontra outro cavaleiro sombrio a quem indaga sobre o Eldorado, obtendo apenas a resposta de que ainda fica para lá das Montanhas da Lua, e depois descendo o Vale das Sombras… não há muito a dizer para além do que a composição nos pode impressionar – talvez uma fugaz manifestação da incrível versatilidade dos SOPOR AETERNUS AND THE ENSEMBLE OF SHADOWS, um tema que parece encavalitar ritmicamente sobre penedos e florestas agrestes e que se perde no horizonte por entre laivos momentâneos de musicalidade hispânica.
Um exemplo do valor da arte maior do grupo de Anna Varney, e que espevita o interesse desta abordagem, adensando o clima de mistério que logo segue em frente com “The Sleeper”, de resto um dos melhores escritos de Poe incluído na referida coletânea de poemas lançada em 1845. O lamento do sujeito poético na cripta onde jaz a beleza da amada, eternamente em descanso velado por anjos, parece ser premonitório do que aconteceria ao próprio Poe quando a sua primeira esposa Virginia Clemm, catorze anos mais nova, morre na flor da idade.
À parte alguma previsibilidade que pode decorrer da temática quase ultra-romântica antes do tempo, dado que Poe é contemporâneo da primeira vaga do Romantismo de sabor gótico, além do mais, no Novo Mundo, a adaptação do tema pelo coletivo alemão é de tal forma sugestiva e quase cinematográfica, que dificilmente vislumbramos outro modo de o musicar – uma espécie de desfile fúnebre, ocasionalmente pontilhado por motivos patéticos que traduzem o estado próximo da loucura do que se prostra junto da pira tumular e encomenda extático a beleza imóvel no sono perpétuo à proteção divina, prece tão bem traduzida pelas frases melódicas do sintetizador que parece refletir o som da eternidade. E mais uma vez, assim passámos onze minutos…
O tema seguinte é o fabuloso “Alone”, que terá mais à frente um contraponto instrumental de mais de sete minutos, aspecto que, apesar de irrepreensivelmente executado, poderá ser um ponto fraco no alinhamento do álbum, visto mesmo como “filler”, já que esta primeira parte é praticamente perfeita – o poema que fechava o alinhamento de “The Raven” e no qual o poeta adivinha finalmente na sua originalidade, na sua unicidade e obstinada individualidade, uma maldição que o atormenta desde a infância, como uma nuvem negra tornada demónio sempre presente na sua visão. Nunca será demais sublinhar a particular força interpretativa a qual Anna Varney se entrega totalmente nesta adaptação de “Alone”.
Entretanto, entrámos já na macabra “The Conqueror Worm” – animada pelo contraste de uma toada mais gothic-pop, Varney reinterpreta a saga do pobre corpo humano que sem vida se rende ao verme conquistador. Neste tema de porte médio, comparativamente às peças de resistência incluídas em “Poetica”, tem-se igualmente a visão de conjunto da herança gótica que os SOPOR AETERNUS carregam, e que tanto pode fazer referência aos CHRISTIAN DEATH da fase intermédia ainda com Rozz Williams, como pode mesmo recuar mais no tempo e citar KLAUS NOMI, obviamente menos o esplendor histriónico operático, mas com a mesma carga de ironia sobre a condição humana, simultaneamente sarcásticos e apaixonados pela forma e conteúdo da criatura mais complexa do planeta.
Tudo passa e assim passa a versão instrumental de “Alone”, na sua beleza estrutural e no seu acervo técnico, música para tertúlias solitárias à lareira, no silêncioda noite invernal – não seria estritamente fundamental, mas como acontece sempre com os SOPOR AETERNUS, tem aquele ingrediente quase hipnótico e macabro que não nos deixa afastar nem olhos nem ouvidos…
O alinhamento do álbum desenvolve para o seu terço final e a atmosfera inicial opressora de “The City In The Sea” deixa adivinhar mais um pedaço de pesadelo nos seus mais de dez minutos. Sem dúvida um dos mais perturbantes poemas de Poe e um dos melhores neste alinhamento de tributo que Anna Varney e restantes companheiros conseguem repor, com inegável mestria, recontando a cidade que a Morte moldou em recônditas paragens marítimas, onde nenhuma luz divina rebrilha, descrição fantástica do imaginário reino dos mortos, que por fim o Inferno, emergente de mil tronos, vem reclamar numa onda gigante de vermelho sangue. A interpretação de Anna será aqui de longe a melhor, num estado de transe em que a cegueira do pavor vê mais fundo que a frieza racional do literato, tornando este momento de “Poetica” verdadeiramente inspirador e revelador da cíclica grandeza dos escritos de Edgar Alan Poe, que só pode ser considerado mesmo um emissário tradutor de uma potestade de dimensão universal.
Depois da segunda parte do curto instrumental “The Oblong Box”, surge a adaptação de “The Haunted Palace”. Outra longa peça de dez minutos e uma superior reposição do poema fortemente cinematográfico (50 anos antes do cinema!), onde Poe fala sobre um maravilhoso palácio e dum monarca em tempos bem-aventurado, cujos domínios, contaminados por “vestes de sofrimento” e ignomínia, se tornaram com o tempo num lúgubre lugar de maldição.
Aqui, mais uma vez, o ensemble de músicos de escol, à volta de Varney, assoberbam-se com justeza para construir uma narrativa sublime que sustem de modo incomparável a imaginação do ouvinte, nos últimos minutos deste excelente disco do ano passado que vai fechar com “Dream Within A Dream”, que os compatriotas alemães PROPAGANDA já tão bem tinham repegado há praticamente 30 anos, e, embora não seja de longe a melhor faixa de “Poetica”, Anna Varney e os SOPOR AETERNUS conseguem mais uma vez encontrar o portal de passagem para o mundo espectral de Poe.
Digamos de passagem que a versão dos PROPAGANDA continua por assim dizer imbatível, mas atendendo ao que o grupo de Varney alcançou nas interpretações que ficam atrás, justiça lhes seja feita que merecem a distinção e o nosso voto de confiança.
Sobre Edgar Alan Poe, já foi tudo dito e feito, mas contudo haverá sempre essa urgência de lhe agradecer os ensinamentos de, através da poesia e narrativa fantásticas, termos a obrigação de entender que a vida e a morte estarão sempre de mãos dadas na dimensão da criação literária, e que por esta poderemos esculpir da maneira que melhor nos agradar, o horror ou a felicidade de conhecermos a ambas de forma intensa e vivida.
Quanto aos alemães SOPOR AETERNUS, e ao cabo de 25 anos em que Anna Varney nos ensinou que o pranto também pode ser uma forma de cantar sublime, só nos resta reconhecer a sua importância da música moderna europeia, vulto negro admirável que como uma velha árvore quase moribunda, se impõe majestosamente no centro geográfico de uma longa tradição de histórias de horror, mistério e, acima de tudo, Imaginação. 

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