"La Mano Di
Gloria" Digibook CD 2012, Alpha South
O tempo de uma afirmação de
carreira é cada vez mais incerto, oiça-se “imprevisível” – regra geral, no
chamado mainstream, ou em qualquer
círculo mais tangente ao marketing corporativo, leva apenas os dias de empurrar
um vídeo absurdo para um qualquer franchising
televisivo alegadamente musical, empacotar um perfil, umas digressões de frango
de aviário e um ridículo culto de imagem fútil e superficial, juntam-se uns
pozinhos de sensacionalismo pretensamente jornalístico, e está encontrada a
próxima coisa grande que durará exatamente o tempo de que os agentes predadores
acima enunciados levarão até à saciedade. Depois apaga-se o lume, desliga-se o
gás, corta-se a luz e cai-se no esquecimento.
Levou de facto algum tempo
até os músicos e escritores de canções entenderem realmente o que havia a
aproveitar do que a agitação punk trouxe de bom para a música popular –
levou-se pelo menos mais de trinta anos a perceber que tudo o que é digno se
constrói lentamente e sem grandes saltos para estrelatos cintilantes. Assim
aconteceu na altura, com ou sem Kim Fowley, ou Malcolm McLaren, com ou sem Tony
Wilson. Os artistas não deveriam depender de usurários dignos de figurarem nos
autos de Gil Vicente, nem deveriam esquecer-se de que as suas figuras ainda
existem – de resto nas adaptações para teatro escolar dos mesmos autos, a alegada
consciência politicamente correcta já está a substituir as figuras do judeu e
do usurário pela de um muçulmano bombista, o que é no mínimo um sintoma inquietante.
Ao que se chegou!
Serve toda esta argumentação
para sublinhar a importância que o fenómeno DIY alcançou na Europa, talvez mais
que na América, ao ponto de, a partir do início do novo século, se instaurar na
maior parte dos países europeus uma consciência autocrática entre as células
artísticas criativas com alguma coisa para mostrar e dizer. Criaram-se editoras
que são mais manifestos de inconformidade com o zeitgeist da União Europeia que qualquer outra coisa, mostrando ao
mundo, parcialmente atento, interpretações e representações do tabuleiro de
xadrez mesquinho em que estamos metidos.
A eterna Itália foi sem
dúvida um dos pontos quentes desta revolução e de Génova, a industriosa e
portuária antiga república, coração da Ligúria, o grupo musical IANVA,
liderado pela figura misteriosa e seca de Mercy, têm vindo a marcar
território de modo inabalável e determinado. Desde os meados da década passada,
dois álbuns absolutamente envolventes, “Disobbedisco”
e “L’Italia : ulttimo atto”,
pareceram colocá-los num panorama de grande neofolk
orquestral, com nítidas influências paralelas do music-hall italiano dos anos 50 e 60, mas seria deveras limitador
considera-los com falta de originalidade. Porque se pode pegar em citações
estilísticas e desenvolvê-las ao ponto de as tornar suas – se isso já estava
patente nos dois álbuns anteriores, neste último “La Mano di Gloria”, os
IANVA entram num novo ciclo apoteótico. Mercy e todos os seus
colegas não são aprendizes nem novatos – de proveniências várias ligadas
anteriormente a géneros ditos maiores como o jazz, o progressivo e o folk,
esta agremiação de grandes músicos profissionais decidiu um dia reunir-se à
volta de um conceito mais abrangente e unitário e fazer da sua música um
retrato vivo do espírito italiano, assim como do seu periclitante estatuto na
conjuntura comunitária europeia.
Ávidos conhecedores da
história, retrataram o futurismo da revolução camisa negra, os seus perigos e
dissidências em “Disobbedisco”,
depois a memória revolucionária vermelha dos anos 70 em “L’Italia Ultimmo Atto”, como se para
fazer calar as habituais suspeitas ideológicas vindas nunca se sabe bem de
onde, e finalmente apontam para o futuro da União Europeia em “La Mano di Gloria”. Mercy é
um hábil escritor, um novelista a sério, e antecipação como género literário
não é para qualquer um…
O termo antecipação
aplica-se aqui porque a narrativa passa-se em 2029, numa Europa já
absolutamente totalitária, mas por um capitalismo distópico, onde literalmente
já não é possível viver. Qualquer relação gradual com o presente é totalmente
propositada. Se o penúltimo disco era uma descida aos infernos do caos sociopolítico
do passado vermelho ao cinzento presente, é chegada a hora de permanecer de
novo de pé e sublevar-se contra o status
quo, agora implicitamente centralizado num certo país a norte. Esse
protesto organizado, essa luta secreta é narrada em “La Mano di Gloria” de uma perspectiva emocional, uma reacção
que simultaneamente popular e aristocrática, liderada por uma minoria atenta que
tem como único fito a libertação dos indivíduos cidadãos europeus do jugo
económico-financeiro que à sua imagem condicionou a verdade, a vida quotidiana
e até o ar que respiramos. Em certos momentos e de uma forma estranha e indirecta,
“La Mano di Gloria” traz-nos à
memória o álbum “Megalopolis” do
franco-líbio Herbert Pagani, lançado em 1972, embora esse tivesse uma carga
irónica muito mais forte. Os IANVA e a sua elite justa e libertadora não
gastam tempo com jocosos jogos de palavras e revolucionariamente vão directos
ao assunto.
Para encontrar a atmosfera
certa seria necessário abandonar o rigor histórico e entrar nos domínios da
ficção – mas como nos provam algumas imagens mediatizadas nos dias que correm,
a realidade consegue ser mais atroz e alienígena que a ficção. O terror imposto
no futuro por uma oligarquia iluminada, tema que fazia já parte da novela
homónima escrita também pelo punho de Mercy, motiva então essa guerrilha,
cerebral e física, levada a cabo por um punhado de gente brava que algures na
Itália obscura do futuro, oriunda de diferentes contextos ideológicos e
culturais mas partilhando o mesmo destino, enfrentam o poder instituído com
armas de pura sublevação estética.
Não se pense que estando em
presença de mais um álbum conceptual se perde pelo facto de não haver unidade
nas canções – tal como isso não aconteceu antes, não acontecerá aqui, aliás,
como não tem acontecido com outros nomes importantes e dominadores da cena neo-folk orquestral europeia, bastando
pensar no caso dos luxemburgueses ROME. À parte essa dúvida, eleva-se o fulcro
patriótico libertário que é o elemento precioso da demanda – a eterna Itália,
com as suas paisagens e as suas artes, dois tesouros que permanecem monumentais
entre o estado de desolação social e o vazio imperial da burocracia do poder,
dividida algures entre Bruxelas e Berlim.
Por assim dizer, e pelo
grafismo pétreo da capa de “La Mano di
Gloria”, o álbum mais parece um fresco do estado atual e das
complicações futuras que enredarão inevitavelmente os países europeus menos
ligados à oligarquia bancária que já agora manda nos nossos destinos – e não é
por pintar um quadro gradualmente mais negro que os IANVA acusam
qualquer nota de derrotismo ou sinal de cansaço. Até mesmo na frente musical
este novo disco do colectivo genovês de nove elementos, é imponente, onde
pontificam, como nunca, os metais de sopro, os violinos, a voz de Mercy
e de Stefani D’Alterio, e uma secção rítmica de verdadeira orquestra,
que salvaguardam o outro lado marcial da música de IANVA, nunca temendo
aproximar-se do arcano melodrama italiano oitocentista, até como prova
identitária cultural. Como se sabe, a mão que puxa na sombra os cordelinhos do
jogo que vivemos pode, aparentemente, incentivar para fins turísticos tal
dimensão, mas na prática será essa mesma prova um perigoso acto contra a
globalização que os nossos políticos nos convidam a abraçar de corpo e alma.
A principal nota de inovação neste novo trabalho dos IANVA, reside no facto de toda a trama se
passar no futuro, obrigando o ouvinte a um pequeno exercício e leitura, já que
não dominará os referentes históricos como nos discos anteriores, o que na
prática constitui outro acto de subversão ao obrigar o cidadão europeu
minimamente instruído a tomar contacto escrito com a língua de Itália, não de
forma compulsiva, mecânica ou laboral, tanto ao gosto dos compadres germânicos,
mas de um modo interessado e afetivo, indutor da solidariedade e da empatia com
a causa proclamada por estas mãos da glória.
Se retomássemos sinais do passado recente no círculo
discográfico em que nos movemos, poderíamos encontrar um paralelo
proporcionalmente indireto em “Flowers From
Exile” dos ROME – só que esse localizado num passado já conhecido, vivido e
acima de tudo já vencido, um dos pesadelos que contribuiu também para a criação
do sonho europeu, a horrível guerra civil espanhola e os seus heroicos
combatentes republicanos, os quais, mesmo mortos e derrotados, ficaram
vitoriosos para a posteridade histórica da libertação dos homens; em “La Mano
di Gloria”, essa vitória ainda está, de novo e por mais incrível que
pareça, longe demais! | | |