X-TG "The Final Report"
Industrial Records, 2012
Na passada semana tivemos aqui a
análise dos valores e inconsistências dos temas presentes em “Desertshore by X-TG”, no qual os dois elementos sobreviventes Chris Carter e Cosey
Fanni Tutti, recuperavam as sessões gravadas até 2010, com o falecido Peter
Christopherson, para os originais de Nico incluídos no seu velho clássico de
1970 com o mesmo título. Se, para esse verdadeiro tributo de amor à memória de
Christopherson, contaram com a colaboração de gente famosa como Marc
Almond, Antony ou Blixa Bargeld, no disco
que completa a supostamente derradeira edição de estúdio das pessoas em tempos
ligadas aos Throbbing Gristle, “The Final Report”, Chris e Cosey repõem parte das gravações originais
antes da morte de ‘Sleazy’ assim como alguns acrescentos realizados já
postumamente.
Vimos que,
na primeira parte desta edição de luxo de Novembro passado, se verificava algum
equilíbrio entre momentos altos e baixos, embora o seu alinhamento no álbum
fizesse temer o pior, quiçá uma obra falhada, o que felizmente não veio a
acontecer. Ao fim de uma audição algo preocupada, chegou-se à conclusão de que
se salvava não só alma do disco, como o cômputo geral das suas qualidades, a
começar por uma produção e mistura irrepreensíveis. “Desertshore by X-TG”
abria assim, suavemente, o caminho para o relatório final da lenda T.G.
A sonoridade
adaptada de alguns dos momentos de “Desertshore” apontava, curiosamente, para a
repescagem de sons de há mais de trinta anos, concretamente semelhantes aos que
figuravam em “20 Jazz Funk Greats” e “Heathen Earth”. É com esse fio condutor
que se restabelece o contacto em “The Final
Report”.
Começando com “Stasis”,
os X-TG constroem um tema de quase sete
minutos que define as intenções de uma obra que pretende encerrar quase
solenemente uma carreira de 37 anos. De um resíduo ambiental crescente, nasce
uma rítmica marcha tribal industrial, polvilhada com drones reverberados que motivam resposta automática da nossa
memória em relação a coisas como Deutsch Nepal, com a mesma gramática abstrata
e a mesma tensão hipnótica presente em álbuns dos supra citados suecos como “Benevolence”
e “Erosion”, não fosse a velha trompete de Cosey Fanni Tutti a marcar com propriedade
a tradicional griffe dos Throbbing Gristle. Para introdução não
se poderia pedir melhor a um colectivo reduzido de veteranos, e na sequência, “E.H.S.”,
resulta numa abordagem ainda mais fiel ao dark-ambient
industrial de antanho, acrescido de vocoders
imperceptíveis, combinados com uma guitarra distorcida que se lamenta em avisos
sucessivos, alertas subliminares que atestam a patente de que os T.G. sempre usaram os instrumentos
ditos normais de uma forma subversiva / subversora.
“Breach” e “Um Dum Dom” parecem enquadrar-se
um pouco mais em território partilhado com as entidades que evoluíram dos
velhos T.G., quer sejam os Coil ou
Chris and Cosey, embora com predomínio da estética de Christopherson, por
exemplo com os Threshold Houseboys Choir/Soisong. Há uma melódica que vai
planando entre baixos e ritmos obsessivos que culminam num tic-tac de relógio
de sala que faz a ponte com “Um Dum Dom”, um chachachá à maneira dos Cabaret Voltaire, recheado com um registo
de teclas entre o vibrafone e o gamelan,
piscadela de olho ao estatuto de cidadão tailandês entretanto granjeado por ‘Sleazy’.
Digamos que este divertido intermezzo
marca a passagem para uma nova dimensão deste derradeiro relatório X-TG.
“Trope” é uma
peça distópica e angustiante, latejante como uma enxaqueca de lucidez no início
de uma grande jornada. Assente num maquinal loop
industrial, cheio de rangeres de engrenagens mal lubrificadas, ressurge o
registo vocal quase kraftwerkiano,
ainda assim pouco presente, ao contrário dos tempos em que Genesis P. Orridge
empregava a sua glossolalia lisérgica. Como constataremos adiante, será mesmo
que com este tema “Trope” que o álbum “The
Final Report” se desdobra, como se de outro álbum mutante nascesse, como um
rebento excrescente pouco bonito de se ver mas mesmo assim fascinante. A
atmosfera opressora parece de novo ganhar forma como em 77, como no iniciático “2nd
Annual Report”. Se tentássemos
estabelecer paralelos com os temas mais duros dos registos recentes de 2007 e
2009, “Part 2 The Endless Knot” e “3rd Mind Movements”, “Trope”,
mesmo assim, conseguiriam batê-los aos pontos, em matéria de retro-actividade. Aliás,
será este um dos pontos mais enigmáticos na análise do trabalho destes músicos,
no momento de dizer “Adeus” – os iconoclastas proscritos que há três décadas e
meia foram alvo de uma guerra santa proclamada pelos conservadores, que os
consideraram destruidores da Civilização, fazem hoje música que está deveras
nos limites mas é aceite consensual e condignamente como vanguardista, como
válida no actual contexto da Humanidade. Quer isto dizer que já poucos ficarão
chocados com as suas arrojadas visões sonoras sobre presente e futuro da
sociedade, quer isto dizer que já nos habituámos todos ao cinzento de “1984” e
ao cheiro nauseabundo que emana das sarjetas da sociedade liberal de controlo
em que nos movemos. Quer isto também dizer que o presente foi ao encontro do
passado e das palavras de Genesis P. Orridge, escritas no panfleto que
anunciava a primeira actuação do grupo, em Julho de 1976 , e que passamos a ler
– “(…) Imagine-se andar por ruas enevoadas, caóticas. Pós-civilização. Cães
vadios comendo lixo, vento a uivar (…) Estamos em 1984. A única realidade é a
espera. Mortal. É a sociedade da fábrica da morte, hipnótica, mecânica, esmagadora.
Música da desesperança. Banda sonora para cobrir o holocausto. Tantra do
subliminal, queda da palavra, queda das imagens. A tribo das mutações, bandos
de rua lobotomizados na fábrica da morte. Sem fim. Crianças da Televisão tentam
preparar-se, meditando no cessar da existência. (…) Chegou a Música para 1984.”.
Ora, em 2013, quem não reconhecer nisto um pouco da sua realidade circundante,
é porque de facto cessou de existir.
E, doravante, no
alinhamento de “The Final Report”, é
constante o sofisticado terror sónico – “What He Said” e “In Accord” asseguram
essa qualidade única de construir narrativas abstratas, que aparentam fazer
perfeito sentido, mas cujo significado não conseguimos esclarecer, embora esta
última até tenha uma heartbeat quase funky, e feche com uma espécie de
solilóquio de pequeno extraterrestre cinzento!
Os momentos
finais do relatório final aproximam-se – a sala ainda não está vazia, mas já
houve gente, menos dada a estas coisas do coração, que os abandonou … com um
olhar indiferente perante todas as suas acrobacias e proezas, perante a sua
inegável meia-idade, avançada e resistente, um pouco heroica, até. Cada um dos
elementos do casal Carter Tutti já ultrapassou os 60 anos de idade, e as novas
gerações nunca se dignam entender o significado do verbo envelhecer- ainda não
está na sua programação biopsicológica. Por seu turno, os X-TG sabem-no bem, ou não fossem eles co-autores da tetralogia que
medeia entre “2nd Annual Report” e “Heathen Earth”, uma
pequena-grande revolução de traços escatológicos contra a sociedade de
controlo, regra geral dirigida pelos que já ganharam a dita experiência de
vida. A sala ainda não está vazia – com eles ainda estão os que sempre neles
viram forças de orientação e criatividade únicas e com eles vão ficar até ao
fim. Os últimos temas sucedem-se com a mesma dinâmica avassaladora e qualidade
impecável – “Gordian Knot” e “Emerge to Space Jazz” (talvez com ecos da velada
profissão de fé que ‘Sleazy’ sempre prestou a Sun Ra), dois momentos que ainda
elevam mais alta a fasquia da qualidade deste último trabalho dos Throbbing Gristle sem Genesis P.
Orridge e sem a presença física, à altura do seu lançamento, de Peter
Christopherson, embora presente na maior parte das gravações. Incautos, os que
vão ficando, ignoram que serão eles a quem a máquina irá ser desligada, não à
banda. Serão eles mesmos, caso não souberem libertar-se duma estética, ela
própria libertária, que lhes revelou a liberdade dos sons há tantos anos atrás.
Último tema, último minuto e meio – parece Ringo a falar dos últimos takes de “Abbey Road” - e regressa o
mesmo latejar de subgraves, o mesmo raspar de chapas e fios elétricos
descarnados, a mesma visão de pacífico estertor que Kubrick concebeu para a
morte de Hal, o computador central da nave de 2001 Odisseia no Espaço. Os sons
digitais morrem hipoteticamente no espaço da nossa sala, que já não é a sala
onde ainda há pouco os X-TG faziam o
simulacro de um grande incêndio final. Parece finalmente haver paz. O silêncio
sem os Throbbing Gristle é igual a
qualquer outro silêncio já ouvido. Será isso significativo? Terá a missão
terminado? Quem os lembrará?
Há 35 anos numa
pequena cidade, um adolescente na secção de revistas de uma grande
distribuidora livreira, hesitava folhear entre duas revistas – uma, inglesa de
título em espanhol, sobre, digamos, atividades naturistas dentro de portas, com
modelos de todo o mundo, entre os quais de Inglaterra, e a outra uma
conceituada revista europeia sobre música jovem, herdeira do espírito
libertário do maio parisiense. Optando pela segunda, o teenager descobriria
para seu espanto e regalo, uma reportagem dissecadora, escrita pelo distinto
jornalista francês Yves Adrien, sobre a nascente música industrial britânica –
de Sheffield, uns tais Cabaret Voltaire e Human League lideravam as sondagens;
de Londres, um estranho grupo de outsiders era alvo da mais intensa e
perturbante descrição jornalística, como se da mais importante revelação se
tratasse, para o futuro da música numa sociedade mecanizada. Ignorava o jovem
leitor que na outra publicação poderia bem encontrar alguma referência a alguns
dos elementos desse grupo. Davam pelo nome de Throbbing Gristle, expressão de rua da região de Yorkshire, para um
fenómeno natural na anatomia humana, ligado à circulação sanguínea. Fim do
último relatório anual.
Texto: JCS
Fotos: AF