SCOTT WALKER “Bish Bosch”, 2012, 4AD
2012 passou. Estamos quase na Primavera de
2013, e a chacina socio-económica infligida pela Europa aos seus filhos menos
prendados ainda é procissão que vai no adro. O tríptico quadro de Bosch só fica
completo com o Inferno. Três álbuns de 2012 aparentam estabelecer uma ordem de
prioridades face ao futuro; os seus autores são todos veteranos experientes. “The
Final Report” dos X-THROBBING GRISTLE é a mais notável das eutanásias
auto-administradas em toda a história da música moderna; “The Seer” dos
SWANS, um inexorável aviso de Revolução. Revolucionário seria também o facto de
SCOTT WALKER ter demorado apenas seis anos a fazer um disco novo. Seis
anos apenas. Sinais da Reconstrução.
Reconstrução, porque há demasiadas pontas
soltas feitas de ouro alquímico suspensas dos seus anteriores dois álbuns, de
há dezoito anos a esta parte. Ouviram bem. 18 anos, dois álbuns. “Tilt!”;
“The Drift”. Com “Bish Bosch”, o completar de uma
fascinante trilogia que legitima de novo a importância que o cantor e
compositor norte-americano ainda tem neste mundo feito de música e canções.
Não será necessário relembrar que foi o teen
idol com voz de arcanjo na mais brilhante boys band de sempre, nos
meados dos anos 60; é necessário não esquecer o bardo existencialista que levou
BREL aos intelectuais anglo-americanos pouco interessados em verões de paz e
amor. Mas é capital que não se esqueça o estóico crooner comercial que,
paradoxalmente para ele, atravessou os conturbados anos 70 com nada menos que oito
álbuns que sendo todos diferentes (um logo em 1970 feito de sólidas canções
mais anímicas, os quatro seguintes como puro exercício kitsch de crooning
de qualidade, mais os três de reunião dos falsos irmãos WALKER), culminavam em
78 com “Nite Flights”, onde SCOTT exercitava em apenas quatro
estranhas canções da sua autoria, o futuro da sua carreira, fazendo de um álbum
supostamente ligeiro um dos maiores enigmas da Grande Pop Music
pré-assassinato de LENNON. O que sucedeu após esta reviravolta quase gótica/cold
wave, foi impressionante. Por causa dessas quatro canções em “Nite Flights”,
BOWIE e ENO fizeram o álbum “Lodger”, que muitos diziam ser o número
final da trilogia berlinense. Mas qual trilogia berlinense? “Low” e “Heroes”
são as duas faces de uma só moeda. O Camaleão ficou verde quando ouviu os temas
de “Nite Flights” e jurou não ficar atrás. “Lodger” de BOWIE e
ENO é um disco de veneração a SCOTT WALKER. Ponto final.
Do novo SCOTT WALKER, a Fénix
renascida, ou Orfeu do Inferno regressado. E de novo, pela segunda vez, o lugar
da condenação surge na esfera de debate do trabalho desta figura a quem muitos
já desistiram de acompanhar o rasto.
Seis anos depois disto, a sequela lógica que SCOTT
WALKER projectou apenas como uma obra discreta, singela, actual mas sem
grandes entusiasmos. Apenas um disco honesto e sentido. No entanto, “Climate
of Hunter” era a Revolução propriamente dita, depois dos tais quatro temas
de “Nite Flights”, meros manifestos num plano maior. O choque junto das
hostes românticas que ainda envelheciam ao som dos cheap thrills dos THE
WALKER BROTHERS foi enorme, e abalados, confusos, ficaram os diletantes
expiadores de destinos, que guardavam antes no coração a tetralogia SCOTT:
1 a 4, entre 67 e 69.
“Climate of Hunter” era um corte epistemológico,
um grande meteorito caído num largo e verdejante vale, capaz mesmo de aniquilar
dinossáurios. SCOTT tinha 40 anos. Passaram-se quase outros tantos. Em
2013, WALKER, aliás NÖEL SCOTT ENGEL (que em alemão significa
Anjo), fez 70 anos. SETENTA. E ao ouvir o novo “Bish Bosch”, após
outros discos de ruptura como “Tilt” e “The Drift”, a estranheza
da ideia parece inevitável – será que os longos espaços entre discos são a
fonte de vitalidade criativa de um homem que no final da década das flores e do
amor escreveu o disco de despedida mais sóbrio alguma vez composto por um jovem
de 26 anos? Um homem em constante luta desigual com a arte maior da composição,
fascinado, enamorado e entediado com ela? Capaz de longos eclipses, como
Lancelote do Lago? E agora na 4AD? Na clássica, eclética, mágica 4AD? Demasiado
bom para ser verdade? SCOTT WALKER cresceu um enigma e um dia será tarde
demais para resolvê-lo, portanto não o questionemos mais …
Entretanto resta-nos atentar em “Bish
Bosch”, sem ideias feitas, sem pretensiosismo. Peça por peça, o disco
arranca com o mecânico “See You Don’t Bump His Head”, que curiosamente
faz lembrar a rítmica de máquina de lavar de NURSE WITH WOUND há vinte anos
atrás em “Thunder Perfect Mind”, mas cuja narrativa dispersa faz
sustentar a obsessão-choque de assistir a um arranque tão enérgico num álbum
novo de SCOTT WALKER. “Corps de Blah” e “Phrasing” parecem
fazer justiça aos momentos mais épicos de “Tilt” e de “The Drift”,
sobretudo “Phrasing”, que traz consigo uma diversidade de géneros,
passando por sonoridades SWANS / GODFLESH / NEUROSIS, Free Jazz e
silêncios de ópera, e até mesmo uma batucada samba, em pano de fundo de líricas
em cripto-verso. Mas o ponto central de “Bish Bosch” é a longa peça “SDSS
1416+13B (Zercon, A Flagpole Sitter”. São mais de 21 minutos. O título
esconde duas entidades anãs castanhas – a saber o corpo sub-estelar mais frio
do universo conhecido, e o próprio Zercon, o bobo mouro da corte de
Átila o Huno no século V. SCOTT não esconde nunca o seu fascínio pelo
detalhe pouco ortodoxo, aliás, é essa uma das essências base do seu estilo, da
sua escrita. “Zercon” pretendia apenas libertar-se da sua situação, do
imenso palácio de madeira de Átila, que ele via como uma gigantesca latrina, e
atingir uma espécie de soberania espiritual e uma altura para lá do nosso
cálculo. Ao passo que a longa peça progride, a personagem de “Zercon”
imagina-se em diferentes estágios de altura – primeiro rodeado de águias,
depois no pilar de S.Simão, e depois um salto surreal para os arranha-céus
americanos da década de 30, onde se torna num “flagpole sitter” uma moda
típica da época que consistia em passar vários dias sentado numa plataforma
assente num poste de bandeira … no final do tema, enregela e morre,
equiparando-se à anã castanha. Como uma grande maioria das canções de WALKER,
uma tragédia.
E estas tragédias revistas enciclopedicamente
não se ficam por aqui em “Bish Bosch” – o tema seguinte, “Epizootics”,
é uma miríade de coisas desagradáveis retratadas de forma mirabolante. “Epizootics”
é uma expressão de calão dos anos 40 que se refere a um novo surto de infecções
no pico de uma epidemia, o que metaforicamente pode ter muitas leituras,
sobretudo no estado actual do velho mundo. De resto é aqui que podemos escutar
o som do Tubax, tocado por PETE LONG. O Tubax é o cruzamento entre uma tuba e
um saxofone, e existem apenas dois em todo o país! É um instrumento monstruoso
e para se tocar tem-se que se sentar no chão, o que está de acordo com a sua
sonoridade sub-grave.
“Dimple” começa com um estoiro que
pode ser impróprio para cardíacos e escorre lânguido mas assustador,
desconfortável, por entre sussurros de vento extraterrestre, com instâncias de
canto em dinamarquês, o que nos faz relembrar que no início dos anos 70, SCOTT
viveu em Copenhaga.
“Tar” é uma peça argumentativa que
lida com contradições bíblicas enquanto os percussionistas de serviço ALLASDAIR
MALLOY e MARK WARMAN brincam com machetes gigantes de um metro e vinte, os
quais estiveram para ser banidos do estúdio, por medida de segurança. Nas
canções de “Bish Bosch” há sempre algo
significativo, interligado com as palavras das líricas, nada é deixado ao
acaso, embora pareça. O álbum fecha com uma canção de natal, dedicada ao dia em
que Nicolae e Elena Ceausescu encontraram juntos o seu destino final, depois de
tanto poder e aparente glória. “The Day The Concucator Died”, o que
repega no tema dos ditadores na obra de SCOTT WALKER – em 69, com “The
Old Man Is Back Again”, falava sobre Estaline, em “The Drift”, sobre
Mussolini e Clara Petacci. O fascínio de WALKER sobre os ditadores
parece residir no facto destes não perceberem no seu percurso que se estão a
condenar a si próprios desde o início (excepção feita a Salazar, Franco e
Pinochet, que se safaram relativamente bem). O tema principal é que Ceausescu e
a mulher não foram alvo de um julgamento, antes de um questionário baseado em
acusações negativas e ao serem executados foram-no à romena, isto é, o pelotão
de execução nem sequer esperou por ordem de fogo.
WALKER sempre disse que cada um dos seus novos álbuns seria o seu último. É um
pessimismo muito especial. Fazer as coisas de um modo difícil, pouco acessível
para a maioria dos mortais e depois dizer-se que será o último. E tal como o
tríptico de BOSCH é suficientemente grande para abranger Céu, Purgatório e
Inferno, assim o é “Bish Bosch”. Pode ser visto ao longe mas ao
perto encontramos maior satisfação estética na percepção do detalhe. E como
dizem os ingleses, no detalhe é que está o Diabo.