Esta noite no destaque central do Café europa, o mais recente trabalho dos italianos THE GREEN MAN. Numa discografia assaz
reduzida e com uma existência já de dez anos, torna-se complicado não ceder ao
benefício da dúvida e assim prestar atenção sempre que o dueto – agora trio –
italiano se digna a gravar um disco. Isto apenas em teoria, porque, na
realidade, a questão nem sequer se põe, sobretudo para quem já os conhece bem
como por aqui no Café Europa.
Em 2005 lançaram o
surpreendentemente misterioso “From Irem To Summerisles” e, dois anos depois, “The
Teacher and the Man of Lie”, que muitos vêm como o seu momento de verdade e de
viragem para uma estatura mítica. Entretanto. tinha saído o 10’’ “Irem”, para
apimentar a aura à volta do grupo que muitos também consideravam um cruzamento
de AIN SOPH e de SPIRITUAL FRONT. A veia ritualística dos THE GREEN MAN está sempre muito presente, não em recheio supérfluo,
mas em referências sagazes, bem colocadas no panorama evolutivo da história da
música popular dos últimos 50 anos.
Dizer que os dois álbuns
anteriores são mágicos é dizer pouco – são a essência da magia feita música –
envolventes, propiciadores da ilusão realmente sentida de que, na sua audição,
o tempo não importa, deixa quase de fazer sentido, através de um trabalho
minuciosos de composição e interpretação, já para não falar na produção, às
vezes modesta mas sempre eficaz. Por momentos hesitámos em não dizer “montagem”
em vez de “produção” ou “mistura”. Mas, mesmo assim, eram outros tempos. Com a
crise global europeia, não deve ser nada fácil continuar a gravar música como a
dos THE GREEN MAN. E, assim sendo,
terão eles conseguido manter os resultados da receita acima neste “Musick Without
Tears”?
Justiça lhes seja feita
que não só conseguiram como, igualmente o superaram, em todas as vertentes. O
estranho trio, liderado por essa voz misteriosa que é a de Eliahu Giudice, terá
mesmo produzido nesse final de ano de 2012 o disco mais motivante para escutar
durante o ano seguinte, já que a sua distribuição é relativamente recente. “Musick
Without Tears” é outro daqueles trabalhos que não dá quartel.
Musicalmente, THE GREEN MAN vêm construindo um
caminho próprio, mas em vez de radicalizarem o seu discurso e a sua estética,
ou mesmo apostado no acentuar da imprevisibilidade como sempre foi apanágio de
algumas bandas italianas suas congéneres, caso dos lendários AIN SOPH ou TEATRO
SATANICO, optaram pela estrada iluminada da música consensual, sem perder
pitada dos seus desígnios manifestamente mágicos.
O disco começa com uma
sólida canção ao estilo de Syd Barrett, dos tempos dos álbuns solo fora dos Pink
Floyd – aliás, a influência positiva do bardo de “Long Gone” é bastante
transversal neste terceiro disco dos THE
GREEN MAN. “Horus Calling” fala-nos de três espíritos que se juntaram na
beleza de uma só chama branca, numa referência ao episódio da iluminação de
Crowley no Cairo em 1904. “ A justiça que ultrapassa a vergonha, a vitória e o esplendor…”
– com tal mote e uma poética que faz justiça ao mentor de tais palavras (porque
não haja dúvida que estamos em presença de uma banda telemita), desenvolvem uma
canção singela que estaria bem tanto em “Their Satanic Majesties Request” como
em “The Piper At The Gates of Dawn” … e aqui há que fazer a ressalva – se Eliahu
é o cérebro por detrás da voz e poesia dos THE
GREEN MAN, a destreza musical pertence toda a Marco Garegnani, que opera
maravilhas neste novo álbum, ultrapassando de longe o seu anterior registo de
2007, evidenciando um salto qualitativo imenso na progressão observável na
carreira de um Músico com M maiúsculo. Os temas seguintes, como “Cefalu” (que
se explica a si mesmo, na óptica filológica do legado crowleyano), imprimem o mesmo rigor enciclopédico – há aqui
referências cruzadas a glórias passadas da música popular moderna, como os FELT,
os momentos mais doces dos JESUS AND MARY CHAIN, os melhores álbuns a solo de JULIAN
COPE – mas nunca descurando o lado hermético da expressão musical, um conceito
talvez impossível de explicar mas que se aproxima da ideia de construir
paulatinamente um tema, escondendo da visão imediata do ouvinte as marcas
óbvias da referência central, induzindo os seus sentidos em piloto automático
para a revelação oculta do todo que as palavras guardam, só até ao momento em
que estas desvelam com subtil elegância e ritual, a sua verdade e perfeição.
Podemos ainda mais
sentir esta ascese em “Blindness is Bliss”, no qual participa Patrick Leagas
dos 6th COMM, e um ex DEATH IN JUNE para sempre, a que não é totalmente alheia
a toada oriental da música, na qual ambas as vozes de Eliahu e Leagas soam em
momentos quase canalizando o timbre de Ian Curtis. É deveras um dos momentos
mais arrepiantes de “Musick Without Tears”, nove minutos de magia em estado
puro.
Convém, a páginas tantas,
referir que o distinto lote de convidados não só inclui o já mencionado Patrick
Leagas, mas também Nicholas Tesluk, guitarrista dos veteranos Changes e a
surpreendente Geneviève Pasquier, ex-femme
fatale dos industrialistas alemães THOROFON, antes de se estabelecer em seu
nome para efeitos ainda mais visíveis nos últimos anos. Para além deste camarote
de vips, há a sublinhar os notáveis
trabalhos de Carlo Gilardi em trompete, Francesca Croti no violino, e Gianluca
Becuzzi nos diversos samples e bruitage que embelezam a totalidade de “Musick
Without Tears”.
Mas voltando ao desfile,
seguem-se “At Stockholm”, com poema do próprio Crowley, com ligeiras adaptações
de Eliahu, numa peculiar referência estilística que em tudo faz lembrar a
encarnação dos alemães AMON DUUL II ou o que deles restava, no seu exílio
britânico nos meados dos anos 80 em que passaram a ser conhecidos por AMON DUUL
UK – a ginástica musical de Marco Garegnani até para isso dá, complementado
pela voz adocicada de Chiara Alice Lorenzini que passou a ter lugar residente
nos THE GREEN MAN. No tema seguinte,
“Chat Blanc”, é que Geneviève Pasquier joga todos os seus trunfos de miseur en scène – num tema jazzy, bem fumarento e decadente, com
uma letra que fala de vestidos de griffe
Coco Channel, de golpes sobre estrelas prateadas e de Picasso, Rodin, Renoir,
Van Gogh, e da fada do absinto que tornou o sangue da protagonista verde-claro
… outro dos momentos de antologia deste disco que não pára e não nos deixa de
surpreender. “In The Desert Chaos Loved Me With A Knife” tem reflexos de Hugh
Cornwell nos momentos mais elevados dos STRANGLERS, mas remete de igual modo
para os dois discos anteriores dos THE
GREEN MAN, numa composição mais seca e cortante, enquanto que “Freedom Is A
Two Edged Sword” traz um instrumental que nos corta a respiração – agarremo-nos
bem à cadeira porque são quase cinco minutos de pura BANDA DO CASACO, folk
progressivo sustentado por um diálogo inesquecível entre grande piano,
guitarras e violino, que nos leva por montes e vales até … à City, coração das
trevas, e à rua de sentido único em Londres mandada construir pelos Cavaleiros
Templários e que tem o nome de Chancery Lane, desde os meados do século XIX
viveiro de escritórios de advogados e solicitadores que se entretêm também em
reuniões sobre mosaicos pretos e brancos. “67-69 Chancery Lane” recupera uma
velha singalong dos pubs, mas introduz-lhe alguma ironia
somente um pouco reveladora, apontando quiçá para as mudanças forçadas de poiso
de alguns elementos da Aurora Dourada, alguns bons anos depois de 1888, quando
a reputação da Ordem já andava algo contaminada pelas distorcidas visões que
alguma opinião pública vitoriana lhe votava. A voz e interpretação de Eliahu
são aqui impressionantemente barrettianas,
ao que acresce uma edição de som algo modificada para o efeito.
O disco que recolocou THE GREEN MAN no mapa da nova música,
sob o radar ávido de uma nova geração de manates de música, está praticamente
no fim e ainda restam dois momentos de impacto – primeiro “(Sweet) Kandy”, uma
balada pop à maneira dos VELVET UNDERGROUND, triste mas satisfeita, envolta em
pura nostalgia de uma vida que se esvai, no cosmos, enquanto o próprio Jesus
abençoa esta partida com um beijo na testa, a voz de Chiara Lorenzini a dar o
tom frágil ao modo de cana rachada de Maureen Tucker.
“Tetelesthai”, expressão
que em grego é equivalente da latina Consumatum
est, revela-nos que o caminho está pelo menos apontado, a direcção bem
exposta. As líricas declamadas por Eliahu dividem-se em dois momentos – na
primeira parte do tema, lúgubre, apocalíptico, infernal, acompanhado ao piano e
violinos, a segunda depois de um longo silêncio, na faixa escondida que desvela
um final trágico para isto tudo, pela mão do seu autor … famous last words – I
shall come again! O desastre do Homem está consumado e mesmo assim ele promete
voltar. No mínimo irónico que o álbum que promete Música sem Lágrimas termine
desta forma, mimetizando bem a estratégia do Enganador, e a ténue esperança do
ludibriado que nos acompanha desde a aurora dos tempos. A Libertação tem um
preço que poucos estão prontos a pagar. Por alguma razão, o realizador Kenneth
Anger é um dos homenageados neste disco.
Conquanto a aura final
deste terceiro álbum dos Italianos THE
GREEN MAN seja negra como breu, não há volta a dar-lhe – trata-se de um dos
mais inspirados e inspiradores discos de 2012-2013 e grande erro seria não o
descobrir e ouvir, tal como esta noite aconteceu no Café Europa.