Algures nos anos do pós-guerra, a canção popular cresceu,
tornou-se predominantemente profunda, filosófica, cheia de significado para uma
nova maneira de encarar o mundo, que se reconstruía após seis anos de loucura e
carnificina. Do início dos anos 50 ao final dos anos 60, foram duas décadas de
ascese espiritual, a princípio decadente, por causa do derrotismo Beatnik, mas
gradualmente mais positiva por afirmar valores que implicavam a esperança numa
nova Renascença para a Humanidade.
Nessa altura não era de estranhar ver poetas e
compositores de reconhecido gabarito a escrever para outros, ou mesmo ver
grupos e cantores que abertamente se entregavam, de forma quase feudal, ao
mester de cantar a obra maior de alguns iluminados ou doutros simplesmente
talentosos. Vimos isso nos californianos Byrds, que alicerçaram o seu boom
inicial nas canções quase perfeitas de Dylan e Pete Seeger, vimos isso na
obsessão catártica de Scott Walker pelo cancioneiro de Jacques Brel ou ainda na
forma como os Love tratavam as gemas criadas por Burt Baccharach. Fazer desse
lado “muso-vassálico” uma forma de vida e carreira seria altamente difícil e
potencialmente descaracterizador da identidade própria. Daí que se conclua que
quando uma banda o consegue, durante praticamente toda a sua existência,
estamos deveras em presença de um talento muito alto. Ainda mais quando se sabe
que os patronos viveram entre os séculos XIII e XIV e se chamavam nada menos
que Dante Allighieri e Francesco Petrarca.
Os italianos CAMERATA
MEDIOLANENSE têm-no feito com rara mestria e em 2013 estão de volta, após
longo interregno, com o álbum “Vertute, Honor, Belleza”, baseado no
cancioneiro de Petrarca e destaque central da emissão desta noite no Café
Europa.
Dizem os registos oficiais em torno da CAMERATA MEDIOLANENSE, que este disco
está a ser trabalhado há cinco anos – no entanto o último álbum de originais
foi lançado há 15 !!! Todo este espaço de tempo entre “Madrigali” de boa
memória e este “Vertute Honor Bellezza”, foi passado como que em suspensão
criogénica, isto é, os elementos fixos do grupo dedicaram-se obviamente às suas
atividades profissionais, mas A CAMERATA,
sempre sob a orientação da musicóloga, investigadora e multi-instrumentista
Elena Previdi, foi lançando singles e ep’s, com a colaboração próxima da velha
equipa que inclui os percussionistas e também multi-intrumentistas Trevor,
Manuel Aroldi e Marco Colombo, com o acréscimo da voz lírica de Daniela
Bedeski, elemento móvel mas fundamental da CAMERATA
MEDIOLANENSE, ao longo dos anos.
Musicalmente, a mudança no trabalho deste grupo reflete
talvez um pouco do que utopicamente se pode chamar “estética clássica da
eternidade” – raramente soa diferente, mas de tão grandiosa que é, a sua
imutabilidade permanece o único veículo pelo qual se fazem anunciar junto das
plateias da Europa e do mundo. Persistem os motivos renascentistas e
neo-clássicos, as percussões de batalha, europeias mas quase tribais, os
teclados de fundo e de base que desenham profundidades em perspetiva que nos
transportam ao recato de séculos ou nos empurram para a frente da imaginação,
mesmo quando soam pop no tema “99 altri perfecti”, que aqui reaparece, depois
de ter saído em ep em finais de 2011, neste caso antecedido pela cerimonial “Canzone
all Italia”, que prepara e completa o primeiro grande bloco alto neste novo
álbum, depois de “Voi Ch’ascoltate” e “Dolci Ire”, os quais abrem com mistério
e a grandiosidade da música vocal italiana, eivados de um espírito
renascentista, adensado por coros e percussões festivas e marciais.
“Fragmento XXXV” é apenas um intermezzo ambiental-poético,
que introduz o solene “Solo et Pensoso”, recheado de movimentos ascendentes e
descendentes dos sintetizadores manipulados por Elena Previdi – aliás, este
álbum é marcado pela proliferação de sons de sintetizador, paradoxalmente na
urdidura musical de um grupo que prima pela abordagem renascentista. Mas, neste
caso, mais uma vez, aquilo que soaria desajeitado e desproporcionado noutro
qualquer grupo de neofolk, surge aqui com uma iluminação sonora capaz de nos
transmitir visões de um passado desconhecido ou de um futuro ausente, como
acontece concretamente no sétimo tema, “Tremo et Taccio”, que termina com uma
harmonia vocal de segundos que gostaríamos de ouvir por mais tempo…
A mesma toada de sintetizadores regressa logo a seguir
para o estranho e bastante ambiental/atmosférico “Vago Augelletto”, que nos parece
outra peça introdutória, mas que logo se desdobra em bucolismo da Idade de
Ouro, com a voz de Daniela Bedeski em primeiro plano. Mas não é erro julgar
este momento como preambular da sequência do alinhamento do álbum – segue-se “Vergine
Bella”, que é também o novo single, e o qual encerra a trilogia dedicada a
Petrarca, depois da anterior, em honra do “Inferno” de Dante. Estes dois temas
formam o segundo planalto perfeito neste “Vertute, Honor, Bellezza” dos CAMERATA MEDIOLANENSE, duas suites que
parecem posicionar-se estrategicamente na composição, como “beacons”
orientadores do trabalho de ascese do quinteto milanês, que neste álbum é
também ajudado literalmente por dezenas de amigos que quiseram dar o seu
contributo vocal e instrumental.
Num ano tão conturbado, não só política como
economicamente, não só social como sempre humanamente, nesta “Europa XXI” em
erosão, que se esboroa de valores por causa de outros apenas tabeláveis para
interesses guardados, existir um disco como este, poderia ser entendido como um
sinal de boa-esperança, cuja realização depende apenas do nosso reconhecimento
coletivo. E enquanto isso não acontece, resta-nos a expressão sentida desse
grande desejo, talvez o “Lo Gran Desire” emocionante que anuncia o final do
álbum e que começa como pesadelo sónico antes de explodir em grandiosa marcha
technopop neo-clássica – outro dos temas que aqui gostaríamos de escutar
alongados.
O álbum encerra com “O Mia Stella”, interessante mas
talvez só um pouco incaracterístico, nos seus laivos de opereta gótica, embora
sempre com a atenuante de ter os coros de Daniela Bedeski e Elena Previdi, que
conduzem o tema a uma apoteose de baile de máscaras, e “Quest’Anima Gentile”
sela o disco com um momento vocal belíssimo do jovem Matteo Benedini, o pequeno
amigo da Camerata que surge em primeiro plano na fotografia de família que
adorna o livreto interior, de novo em dueto com a luminosidade cristalina da
voz de Daniela.
Afinal de contas, acabamos por perceber porque é que
passámos esta revista a falar de Renascença, Esperança e Idade de Ouro. Este é
um dos trabalhos de música popular fundamentais deste ano e os valores
petrarquistas que canta não são necessariamente cognatos das 3 graças que os
senhores do avental proclamam – a CAMERATA
MEDIOLANENSE apenas cumpriu aquilo que se propôs fazer – mostrar virtude,
honra e beleza. Foram 15 anos de espera por um trabalho maior que se
justificaram em pleno, se bem que nestas coisas das artes maiores, da música e
da poesia, dos génios e dos talentos, o tempo é sem dúvida aquilo que menos
importa.