Passámos as nossas vidas a ouvir música – quase sempre na
cidade, aos milhares, fomos colecionando evidências da totalidade das músicas
que nos ligavam a alma. Quase invariavelmente, a eletricidade esteve presente
como energia que alimentava os meios geradores da música, assim como os
veículos da sua transmissão. E do rock se fez prog, e do prog se passou
ao hard and heavy, e ao punk, e ao industrial, e ao dark-ambient, e a todos os rótulos
possíveis e imaginários que se podem colar numa massa de sons que provêm todos
eles das vivências na cidade, e do uso e abuso talvez pouco saudável da
eletricidade. E malgrado as contas ao fim do mês continuem sempre a exibir a
agravante felonia de quem pretende distribuir progresso contra a hipoteca da
vida e alma dos cidadãos, a música elétrica vai continuar a fazer parte das
nossas vidas. Então, questionar-se-á o ouvinte, não há nunca uma trégua para os
ouvidos do melómano, nunca um momento de guarda baixa que nos reconcilie com os
sons naturais?
A resposta é simples e direta – também ainda não nos
cansámos da canção folk ocidental, aquela que nos faz reencontrar tradição e
natureza, mais para estes lados do Atlântico. No século XXI, que em pouco ou
nada melhorou a existência humana, continua a existir o género musical que é,
transversalmente, a fonte de todas os outros, e persistem os perpetuadores da
Tradição da Canção, que com a sageza que ecoa já de muitos séculos, encontram
sempre formas de nos surpreender a todos. É o caso de DUNCAN EVANS, guitarrista dos post-metalers
britânicos A Forest of Stars, no seu álbum “Lodestone”.
É fortemente motivante ouvir um disco inteiro sob a égide
da mais pura canção folk, da melhor cepa que a tradição britânica pode
oferecer. DUNCAN EVANS é ainda jovem
e de futuro poderá dar-nos ainda melhores trabalhos, consolidando uma vertente
mais pessoal, fora da influência dos A Forest of Stars, que só por si
constituem um caso de originalidade na cena post-metal
do Reino Unido. Aliás a tag post-metal
só pode querer dizer “para além” e não “após”, porque na realidade só ´da
continuidade a um ramo do rock que é praticamente cinquentenário.
O mesmo faz DUNCAN
neste “Lodestone” – diga-se logo que
a grande referência histórica é a de Richard Thompson. As guitarras são tão
impressionantemente fidedignas que até Bob Mould – um dos mais reputados filhos
espirituais de Thompson – nunca conseguiu tal proeza. E mesmo a expressão com
que DUNCAN EVANS pontua as frases
que canta, não anda longe da retórica trovadoresca rufia do ex - testa de ferro
da Fairport Convention, embora se demarque do seu timbre. Curiosamente, há
qualquer coisa de Boy George na marca tímbrica de DUNCAN EVANS, o que só acresce em entrega quase soul ao mester das
suas canções – aliás se cruzarmos estas duas principais referências, poderíamos
até chegar perto do conceito celtic soul de
Van Morrison, não fosse a chancela deste demasiado negra para ser compaginada
no apuro melódico essencialmente folk de EVANS.
Feitas as apresentações, partamos à descoberta de “Lodestone”. “Bird of Prey” arranca com
uma introdução de guitarras acústicas perfeita e rápida que dá imediatamente o
tom que governará todo o trabalho – execução exemplar, perfeccionismo
apaixonado e total observância de cânones conhecidos, aceites e não esquecidos.
É um regresso saudável a 1969, a um dinamismo criativo da canção folk que não se
importa de agradar ao mainstream mas sabe equilibrar-se muito bem em cima da
cerca – é arte popular, artesanato impecavelmente acabado que brilha até no
escuro. Uma canção sobre o desejo, servindo-se de artifícios poéticos plenos de
animismos e simbologias que assomam na esquina do tempo desde a mais remota
tradição oral e dos mais antigos escritos pagãos. É por isso mesmo um momento
perfeito, até porque se tem de imediato a sensação de se estar em casa – não
aqui intervenções alienígenas.
Outro momento alto deste disco de estreia de DUNCAN EVANS será “Forever So” – um
tema de revolta e lamento que tanto pode dizer respeito a um alistamento em
corpo militar de elite, ou a uma companhia de mineiros ou simplesmente a um
serviço cívico; no fim do dia, o sujeito poético acaba desiludido e acusado
pelo corpo, arcando com as culpas de outro, porque é preciso encontrar
culpados, mesmo que em tempos lhe tenham procurado inculcar o espírito de
pertença, o espírito de batalhão, o da unidade … musicalmente, “Forever So” é
uma barragem acústica de ira dedilhada misturada com riffs e uns arpejos
elétricos lá ao fundo, cheios de beleza, que mais uma vez perfilam Evans nas
fileiras dos herdeiros estilísticos de Richard Thompson – que por sinal ainda
está bem vivo e recomenda-se.
“The Old Lies” quase nem nos deixa recuperar o fôlego – e
estamos em crer que se trata de um tema sobre o que aconteceu em Londres e no
Reino Unido em geral, no Verão de 2011. Algumas das palavras aparecem riscadas,
como censuradas à velha maneira das cartas previamente lidas no Exército,
deixando apenas perceber algumas letras. E o tema avança como que desmascarando
as razões pelas quais foi preciso encobrir o que levou a tais manifestações de
desespero e oportunismo ganancioso.
“The Curtain Falls Down” faz suite com “The Sailor Boy”,
dois temas que arrastam consigo quaisquer reticências de dúvida que pudessem
estar a ser guardadas pelo ouvinte, em como este é um dos mais importantes
discos do ano passado.
“The Curtain Falls” trata de uma visão apocalíptica do
sistema em que vivemos – do estertor do capitalismo que consigo vai demolir
grande parte do mundo que se construiu; há um certo estoicismo suicida nas
palavras de DUNCAN EVANS que por
segundos nos fazem desviar os olhos do libreto e pensar … “The Sailor Boy” é
uma história setecentista, plena de contornos do arco-da-velha, decadente e
sanguinolenta, uma história de mancebia e infidelidade que começa e acaba mal,
talvez até com um pequeno toque de escárnio à maneira de um Hunderby.
No fundo, uma revisitação das temáticas folk obscuras que
povoavam a mente de Richard Thompson nos idos de ‘70 e que no presente talvez
só Andrew King tenha traquejo para assumir as rédeas. O álbum fecha de seguida
com mais um par de temas: “Cold World”, numa exploração de criação mais
intimista, que tal como o segundo tema que ignorámos há pouco – “Cindy” –
passam por ser os momentos mais indiferentes de “Lodestone”, embora nada devam ao lirismo de qualidade que está
indubitavelmente marcado nas impressões digitais de DUNCAN EVANS. No entanto, é com “Girl on the Hill” que a chave de
ouro está para guardar todos os mistérios e segredos do coração que irradiam
através das frinchas de cofre ferrugento que este álbum parece constituir. Um
longo tema de acordes, dobros e solos arrebatados que gritam pelo nome de
Richard Thompson em todas as secções, mas da tal forma que só DUNCAN EVANS, até ao momento, é capaz
de fazer – apropriando-se estilisticamente de um legado demasiado precioso para
cair no esquecimento, demasiado representativo de uma cultura popular e, quer
se goste ou não, Nacional.
Andámos todos estes anos navegando nas águas glaucas do dark-folk, e com razão, porque se nas
últimas três décadas causas houve para resistir, aquela que procurou restituir
a faceta de autenticidade à música popular terá sido a mais elevada, para não
dizer a mais nobre. Esses heróis e cavaleiros dificilmente verão estandartes e
pavilhões mais festivos que as tavernas onde se reencontram com a sua gente. E
nisso nada de mal haverá. É uma glória de outra estirpe, uma vitória pessoal
que vale como conto cautelar. Mas na década em que as estrelas de plástico,
criadas pela “Great Whore” que é a mega-indústria musical pop anglo-americana,
rebentam a imagem e a cabeça de encontro ao gradeamento iluminado dos media,
capazes, sabemos lá, de revelar enfim qual o porquê da sua aberrante existência,
que surja da bruma eterna das terras de Merlin e Artur, um bardo chamado Duncan
Evans, será talvez sinal de que as grandes plateias poderão de novo reaprender
a ouvir música e canções verdadeiras, autênticas como a pedra dos seus antigos
templos.