O colectivo luxemburguês ROME, comandado por Jerôme
Reuter, tem vindo a marcar profundamente os trilhos da música popular do
futuro. Em cerca de dez anos, foram criados trabalhos capazes de garantir, só
por si, um espaço na música moderna europeia, fugindo a todos os possíveis
rótulos e comprometendo-se seriamente com ideais que ultrapassam em nitidez os
vagos sonhos libertários da segunda metade do século XX.
Jerôme Reuter e companheiros, concretamente nos álbuns “Flowers From Exile”, “Die Aesthetike Der Herrschafts Freiheit”
e neste “A Passage to Rhodesia”, afirmaram-se como dos mais fortes
proponentes dum grande renascimento da canção e do álbum conceptual, da poesia
com uma verdadeira e significativa mensagem, tudo apanágio do tal compromisso
com a Liberdade, a Filosofia, o Conhecimento e, em suma, com um Humanismo que
procura sempre esquivar-se de todos os clichés formais da música pop/rock.
Dizer que os ROME
ainda são um projecto de neo-dark-folk em
2014 é um autêntico anacronismo; os patamares de sofisticação no capítulo da
produção em estúdio, a versatilidade das suas composições e, acima de tudo, o
acervo literário dos poemas de Jerôme, fazem dos ROME dignos pares de nomes como os SWANS, DEATH IN JUNE, NICK CAVE,
o que poderá passar sempre pelo crivo da influência maior de LEONARD COHEN e JACQUES
BREL.
Para os estreantes na música dos ROME, começar por este “A Passage to Rhodesia”é como uma
bênção para os ouvidos ávidos de santuário, nos labirintos estéticos do
presente. Trata-se de uma massiva obra-conceptual incidente criticamente, como
é óbvio, no país que nos anos 60 e 70 cristalizou o ideal do apartheid.
Os ROME,
detentores de uma consciência natural, independentemente alinhada com a chamada
Nova Esquerda, despoluída de lugares comuns que conhecemos sobejamente, abordam
as memórias de uma vida passada nas paisagens inebriantes de uma aventura
colonial, alicerçada no velho sonho pioneiro do desbravamento branco da África
negra, não numa perspetiva meramente saudosista como se tem assistido em quase
tudo o que é produzido em veículos mediáticos que pretendem alegadamente
confortar os corações dos que lá nasceram e viveram, infelizmente compactuando
com as tomadas de posição colonialistas e supremacistas dos seus impérios em
lenta decadência.
O ponto de vista assumido pela escrita e composição de Reuter parece mais rever-se na obra de
Joseph Conrad, “O Coração das Trevas”, já não como imagem do narrativo fascínio
pela descida aos horrores da vontade de Poder, mas como prova de reflexão sobre
a vontade do sonho impossível. Aliás, esta visão crítica poderia ser aplicada
em termos, a qualquer das nações europeias que mantiveram outras nações
africanas em segregação absoluta até ao início do último quartel do século XX,
na qual também se inclui a nossa. Mas, a condenação inerente do estado da
Rodésia, como uma espécie de experiência unilateral branca absoluta, não passa,
segundo Jerôme Reuter, pela visão
simplista de considerar a maioria dos Rodesianos brancos como brutamontes
racistas, sendo assim possível promover uma abordagem poética dos sentimentos
dos que piamente acreditavam estar do lado do bem na História, enquanto actos
sangrentos se desenrolavam contra as organizações de libertação e resistência,
e o número de mortos se acumulava de parte a parte.
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JeROME Reuter |
Esse paternalismo, para alguns insuportável, simbolizado
na figura de Ian Smith, como o derradeiro guru branco do Apartheid
integracionista – por muito paradoxal que soe – acabava por passar por mero
patriotismo de sangue, eivado do espírito de missão cristã branca, mas muito
pouco inocente em relação à riqueza natural do país, face à quase indiferente e
hipócrita posição da Coroa Britânica, que se limitava a lamentar que “aqueles
Rodesianos tinham morrido pelo Reino Unido” e que a cada “Poppy Day”, dia de lembrança dos caídos pelo Império, os incluía no
voto de “We will remember them”.
Acreditar que o sonho Rodesiano, tornado pesadelo durante
quinze anos, desde a declaração unilateral de independência em 1965 até à
vitória inevitável de Robert Mugabe nas eleições de 1980, foi talvez a
derradeira mostra do espírito aventureiro branco ocidental, será decerto sinal
de grosseira ingenuidade. A grande maioria dos brancos Rodesianos, embora gente
decente e bem-intencionada, alicerçava a sua visão de futuro na projeção do
bem-estar material, assumindo a marcada divisão social e racial, em certos aspectos
bem mais vincada que na vizinha África do Sul, então também no auge do seu apartheid.
Como diz o próprio Jerome
Reuter, a aventura Rodesiana branca desnovelou um longo e frágil fio de
contradições e paradoxos, afinal tão típicos das sociedades humanas. Mais
baseado na ignorância e na distância cultural, que no racismo intencional, puro
e duro, o domínio do projeto de Ian Smith tornar-se-ia num tétrico anacronismo
do século XX, numa longa guerra que se estendeu durante toda a sua vigência, em
que as forças brancas e a resistência negra se envolveram em incontáveis
episódios de bárbara chacina, epitomados, a título de exemplo, pelos britânicos
THROBBING GRISTLE no tema “Slug Bait”,
numa época em que também as nações vizinhas Angola e Moçambique se envolviam
também em longas guerras fratricidas, com a presença dúplice de batalhões de
mercenários brancos de origem britânica diversa, alguns dos quais acabaram
frente aos pelotões de execução do MPLA, depois de terem feito toda uma rodagem
de campo nas Bush Wars rodesianas.
Mas, há muito mais sobre a Rodésia, para lá dos controversos factos que a
História registou nas suas páginas sangrentas, e, parafraseando João Bénard da
Costa, será esse inatingível sonho que, através de imagens sobrepostas de luz e
trevas, o Poeta quer exprimir.
E depois de todo este longo preâmbulo, já com sabor a
desenvolvimento da nossa abordagem especial a “A Passage to Rhodesia” no
Café Europa, apenas motivados pela dimensão grandiosa do novo disco dos ROME, que agora são mesmo apenas Jerome Reuter, é pois forçoso que nos
concentremos na música e criatividade mais uma vez evidenciados pelo ainda
jovem compositor luxemburguês. Contudo, bem sabemos que é difícil separar o
tema da sua forma – o trabalho dos ROME
tem vindo a cristalizar a sua estética, num aprumo ascendente de escrita da
canção, dos arranjos, da colagem e manipulação sonoras, e ainda no plano de
gravação e produção, por vezes com a recorrência a velhos sistemas analógicos,
outras dominando por completo as facilidades que o processamento digital trouxe
aos músicos dos nossos dias.
“A Passage to Rhodesia” goza
sobretudo de um efeito que está patente essencialmente nos dois CD’s e um pouco
menos no maxi-single picture-disc 10’’
que acompanha a componente áudio deste lançamento – a mestria do uso de eco e
reverberação capaz de comprovar um dos motes que Reuter usou para a concepção do álbum – “O passado é um outro país”.
É também necessário não esquecer referir aos
recém-chegados aos ROME, que este
conceptual duplo álbum e meio, tem um primeiro disco de doze canções,
coerentemente compaginados no formato grandiloquente e solenemente sentido a
que já nos habituaram, enquanto o segundo CD nos traz outros doze temas de carácter
historic-ambient, com colagens
sonoras reais de época (algumas propositadamente roufenhas) assentes em leitos
de teclados, instrumentação diversa e efeitos, traduzindo a outra vertente
menos óbvia dos trabalhos de ROME.
Dado tratar-se de uma obra conceptual, parte narrativa,
parte evocativa do sentido ou da ausência dele no episódio Rodésia 65-80 na
História, e mais concretamente na História de África, o ouvinte parece receber
mais “input” significativo pelo CD 2
e pelo 10’’ do que, exactamente, no disco de canções, mas será impossível
ignorar o potencial lírico de Jerome Reuter.
A sua voz calma e profunda, a prosódia solene mas bem colocada e articulada,
elaboram profusamente sobre os fantasmas históricos da Rodésia, um magnífico
efeito de nostalgia, horror, pesadelo e assombração.
O correspondente adjectivo inglês “haunting” define bem o efeito final, tornando toda a outra
argumentação redundante. A citação de Hemingway que dá mote a “The Ballad of
the Red Flame Lily”, primeira canção do álbum, após a abertura
instrumental-ambiental de “Electrocuting an Elephant”, diz que “para se viver
em África, tem-se que saber o que significa morrer em África” – o ponto de
vista autocrítico fica lançado, o reconhecimento do erro, dos remorsos que se
afogam num confronto de mitologias que contrapõe o cristianismo às religiões
autóctones, em que a moral, a ética, o sentido da vida se esvaem no vazio que
há no centro de todas as coisas.
Na primeira parte de “A Passage to Rhodesia”, Jerome Reuter não se cansa de
referenciar as frases e versos soltos que os Grandes deixaram para a História
e, pegando em T.S. Elliot, avança com:
“Dêem-se por satisfeitos
por terem luz suficiente para assegurarem mais um passo em frente”,
mas, em “One Fire” o sentimento é ainda o do
colono que se fecha na sua comunidade “in
the outback”, fazendo dos mortos as coroas fúnebres do seu ideal que
esmorece dia a dia, até nada restar. São apenas treze versos de grande poesia,
como uma gota de sangue num copo de água pura, como uma chama na savana seca, à
noite. “The Fever Tree” parece ser um tema que tanto se aplica aos settlers brancos como aos indígenas da
Rodésia, versos que se alinham no lamento de tal sorte e destino, contando os
batalhões dos mortos, verificando e pesando a raiva que de parte a parte tornou
cada interveniente num salteador do doce país da sua infância, quer na cidade
de altas torres brancas ou nas aldeias da desolação, fome e morte. Essa direção
dual temática aparentemente também se mantém no título já conhecido “Hate Us and
See If We Mind” - dum lado o esgotamento e a perda da esperança num sonho mal
fadado, e do outro, a fé do direito natural à terra, dos que se escondem no
mato à espera do momento adequado de atacar o leopardo na garganta. Num certo
sentido, o fatalismo branco nasce duma dada racionalidade que perdeu qualquer
razão perante o solo empapado de sangue e lama, e os resistentes sabem que é
apenas uma questão de tempo. Musicalmente, é um dos temas mais marcantes deste primeiro
CD de “A Passage to Rhodesia”, um tema de neofolk enérgico e recheado de imagens do tal passado televisivo,
que é de facto “outro país”.
E depois há as palavras reveladoras de “The
River Eternal”, aqui em tradução livre nossa :
Rumo à escuridão
brilhante
Viajamos pela negra
serpente ofuscante
Que nos leva direitos ao
coração deste pesadelo
No fim deste rio está o
fim desta guerra
As suas margens povoadas
pelos sonhos dos homens
Que agora penetram na
serenidade.
Espalhando sementes nas
feridas desta terra em ruínas
Vendo a selva deslizar
por perto
Passando pelo fumo
tonitruante das Quedas
No fim deste rio
cheirará apenas a doença e a morte lenta
Estávamos errados, muito
além de errados
Tentar criar um paraíso,
a calma deste riacho enraivecido
Agora tudo se foi
Mesmo os laços nascidos
do terror
Mesmo por dentro deste
coração,
o mais escuro entre os
escuros
por este rio de insónia
acima
Se tudo isto fosse
apenas loucura
Se fosse apenas, se
fosse apenas …
Um lânguido tema declamado sob um manto soturno de strings, talvez a descrição de uma fuga
ou talvez sinal de antecipação de uma morte anunciada, a morte do próprio país
projetado sobre os desígnios dos naturais, sob o ímpeto dos crentes da vontade
branca, a caminho da negação, com a referência académica mas bem-vinda a Joseph
Conrad e a “Heart of Darkness”. Como uma maldição.
“A Country Denied” dá seguimento ao mote
anterior e daqui em diante assistiremos às exéquias poéticas da Rodésia, talvez
como nunca antes o ouvimos. “Lullaby for Georgie” parece escrita pelo próprio
Ian Smith, a despedida amarga de um visionário com as visões erradas sobre o
futuro de um país que não é inteiramente o seu. Por outro lado “In a Wilderness
of Spite” retoma a ideia do rio Aeeth como o cortejo fúnebre da nação, que é
também o seu serpenteante túmulo, com outro poema de intenso sabor conradiano,
se bem que de novo um mote de T.S. Eliot para a canção anterior parece fazer
todo o sentido:
“Entre a ideia e
realidade, entre o movimento e o ato, cai a sombra”.
Provavelmente por isso, o penúltimo tema se
chame “Bread and Wine”, apanágio do pragmatismo resignado da sobrevivência,
anos após o sonho desfeito de um paraíso branco um pouco abaixo do coração de África,
num poema que rodopia numa ciranda de saudade:
Dizermos que estamos
aqui
Que reclamamos o nosso
passado,
Embora soubéssemos que
não pudesse durar
A nossa tentativa
patética de moldar este lugar
À nossa maneira
estrangeira.
Dizer que estamos aqui
para ver as nossas casas
Serem enterradas por uma
salva de pedras
Assumir tudo isto e beber
à nossa queda
Por isso amigos, bebamos
a esta memória tão boa
Porque nem tudo está
perdido
Quando ainda há vinho e
broa,
Porque ainda não está
tudo perdido quando há vinho e broa
E depois recuando no
tempo
Eu sou eu e tu és tu
E a vida que conhecemos,
que amámos tanto
Está aqui impoluta,
virgem,
Aguardando essa salva de
pedras
Encontraremos o nosso
destino em casa
Enquanto homens se
tornam ratos
No encerramento do
pecado
Por isso amigos, bebamos
a essa memória tão boa
Porque ainda não está
tudo perdido
Quando há vinho e broa
Oh como sentiremos a falta
do teu verde e dourado
Do ressoar dos teus
riachos
Da majestade das
tempestades
Dos sons das tuas pombas
noturnas
Do calor na nossa pele
do teu sol das colheitas
Do perfume do teu quente
algodão
e dos teus leopardos ao
sol
Já atrás o dissemos, Jerome
Reuter está para além de qualquer conotação política, nem de longe
aparentado com nostalgias perigosas (e entenda-se, perigosas sobretudo para
quem as alimenta, no atual estado de situação no mundo ocidental); no entanto,
a forma sentida e honesta com que analisa a alma do rodesiano branco é
assustadoramente lúcida. Não há aqui sombra de vontade de crucificar
publicamente aqueles que acreditavam piamente estarem a fazer o que estava
certo – apenas constatar que a mais pura das intenções, o mais decente dos
credos, pode acarretar erros que crescem como crimes contra a humanidade
através dos séculos. Apenas a vontade simples de testemunhar uma queda
justificada, gloriosa, esforçada e honrada, mas quão mesmo uma queda. Se entre
nós e vós haja quem lá tenha estado, via o nosso próprio drama de
descolonização do lado do Índico, ou se lembre de lá ter estado apenas como
visitante nos soalheiros dias de ‘60 e ‘70, poderá ou não atestar melhor se as
palavras deste luxemburguês poeta e trovador estão ou não mais que certas, que
sejam exactas, no meio do turbilhão de emoções que as memórias geralmente
desbloqueiam em massa, como as águas de uma queda em África.
A luxuosa caixa em formato de dez polegadas, alberga um
fantástico beau livre com inebriantes
colagens fotográficas que narram e transpiram melhor tudo aquilo que vos
tentámos transmitir, e como dissemos, há ainda um DVD com 3 videoclips e uma
entrevista de 3/4 de hora com Jerome
Reuter, para além do belíssimo picture-disc
que é um maxi de 10’’ a 45 rpm, com
os temas “Braai, The Beloved Country”, e “My Traitor’s Heart”. Os doze temas
incluídos no segundo CD, como também apontámos atrás, não são canções formais,
antes postais sonoramente ilustrados, tendo portanto como morada do remetente,
o tal outro país que é o Passado.
Sendo uma edição limitada a mil exemplares, saída
oficialmente em Abril deste ano, naturalmente com um preço pouco convidativo,
mas aceitável perante tal brilhantismo, poderá ainda ser adquirida pelos que
hoje se tenham sentido tocados pela grandeza dos ROME de Jerome Reuter.
Texto: JCS