TONY WAKEFORD
Faixa 1: Is there a heaven?
A pergunta milenar da razão da esperança e do medo da
perdição na existência humana…haverá um Céu ao qual possamos aspirar,
independentemente da nossa conduta? Ou será que se pode sempre comprar o homem
no topo da pirâmide hierárquica da religião importada do próximo oriente há
dois mil anos? E, depois disto tudo, haverá mesmo um deus? Como sempre, a
referência cínica de Tony Wakeford
sobre os poderes financeiros que governam o mundo da dita espiritualidade e
compõem as ilusões dos homens, sobretudo dos escravizados, o que nos traz à
memória coisas como “Holy Water”, quando ainda integrava os Death in June. Basicamente,
o que esta excelente abertura do álbum dos Twa
Corbies nos diz é que os letreiros dos portões dos campos de Auschwitz e
Treblinka, no mínimo, apenas mudaram de donos, ironicamente…
O regresso do projeto Twa Corbies, de que conhecíamos apenas referências ao vivo, acaba
por ser uma reconfortante estreia no retorno à atividade neofolk no ano de 2015. Gravado em Agosto de 2013, levou 14 meses
de pós-produção, e mesmo assim Wakeford
não terá ficado inteiramente satisfeito com o resultado final, chegando a agradecer
a Patrick Damiani pelo trabalho de recuperação da salgalhada acústica que o
colaborador e co-autor Gernot Musch,
dos Golgotha e Pilori, gravou e misturou na pré-produção. Com tal declaração,
acabamos por não ficar a saber se se trata do seu lendário sentido de humor ou
se é de facto uma anunciada picada de mau-humor. Um disco que assim começa,
promete pelo menos alguma tensão da qual pode nascer a luz…
“The Clamouring”
será também, à partida, mais um manifesto de descontentamento com os rumos das
políticas europeias, independentemente da ideia de nação, e muito menos da
falsa união que pretende para si a coroa de louros da pacificação à força, da
submissão das vontades ao poder da Eurobanca.
Musicalmente, estamos em presença de um trabalho que, a
julgar pelo começo, só ser tão ambicioso quanto o último dos Sol Invictus, “Once
Upon a Time” e, por isso mesmo, portador daquela envolvente primitiva,
simplista mas extremamente contundente a que Wakeford nos habituou ao cabo de quarenta anos de atividade, dos
Crisis aos Death in June, dos Death in June aos Sol Invictus e restantes
projetos satélite. Ouviram bem, são quase quatro décadas de trabalho incansável
que nos Twa Corbies encontra mais um
veículo para, através de poesia e música, apontar o dedo da desolação ao
panorama da lenta desagregação do sonho europeu.
O segundo tema do álbum é assinado por Gernot Musch e chama-se “The Tower of
Babylondon”, sendo um notável exemplo de construção poética, onde os lúgubres
acontecimentos históricos associados à Torre de Londres ao longo dos séculos,
parecem ganhar vida e regressar ao presente para ameaçar solenemente os novos
protagonistas da vida política britânica, quiçá com alguma justiça, a julgar
por puras patifarias históricas assinadas por mais ou menos recentes regentes
dos governos da City. Curiosamente, um tema que acusa um pouco do som alemão
das bandas neofolk de ‘90 e 2000,
como os Dies Natalis, entre outros.
A “Fool in April” é uma lengalenga de quatro minutos que
nos retrata a todos, cidadãos anónimos do jogo democrático, apanhados em
constantes renovadas mentiras de Abril – e em Portugal, concretamente, o jogo
de palavras ganha especial relevo! Mãos sangrentas marcarão aqueles que se
estão nas tintas – um bom prenúncio para a revolução, segundo Wakeford, na sua razão…
O mesmo se pode aplicar ao seguinte, “See-Saw”, que
parece ser o resumo lógico das consequências de tudo aquilo a que já fizemos
referência em apenas três temas – que não se levante a tampa dessa caixa, outra
vez; há uma aranha que tece enquanto um cornetim toca, e uma menina que cai do
balancé, e o solo está de novo coberto por carpetes de cristal, por entre o
nevoeiro e o matraquear metálico dos vagões nos carris. Será um sonho mau ou
uma mera questão de tempo?
Saltando de “Dresden Heather Song”, que nada tem de mal, para
outro tema, já que aqui não se pretende a dissecação laboratorial dos grandes
discos, mas tão-somente o seu destaque e louvor, voltamos às significativas lengalengas
repetitivas de Tony Wakeford – “Would
you shake the hand of god?” Apertarias a mão a Deus? A questão é repetida até à
exaustão, tal como exaustiva será a dúvida que nos resta nestes dias de
incerteza.
O minimalismo de algumas das canções de Tony Wakeford é, com os Twa Corbies, compensado pela gentileza
poética dos temas assinados por Gernot
Musch, que, não obstante, nunca renuncia ao seu apadrinhamento – “Dark and
Drublie Days” será talvez o melhor tema escrito pelo líder dos Golgotha para os
Twa Corbies, e que, para não variar,
fala das esperanças da humanidade, na secreta esperança de haver mais qualquer
coisa que “isto aqui” – e subentendam-se as aspas.
O contraponto dado pela voz de Wakeford no refrão é um sinal de que de criadores alegadamente
conflituosos entre si, pode haver um momento mágico de harmonia, e de resto,
este será também um dos momentos mais elevados do álbum. Enquanto o mundo
continua a girar, há coisas que permanecem e não se escondem, e os horrores do
passado são ainda os mesmos de ontem.
Mandámos embora os deuses que adorávamos, e deixámos
entrar outros porque com a liberdade nos aborrecíamos; encontrámos as razões
para roubar, matar ou de morte ferir, porque já não nos importa em nome de quem
trair.
Na verdade, apenas existem dois tipos de álbuns – os que
sobem ao seu zénite, bom ou não, e depois rolam encosta abaixo do fiasco, ou os
que por artes régias, deixam essa marca, para continuar a escalada.
Embora o título, nesta ordem de ideias, soe paradoxal, “She
Descends” é uma das mais intensas baladas de sempre, assinadas por Tony Wakeford, e onde graciosamente
brota um aplicado exercício de sentido tributo a Dante Allighieri. Se, com tal
sequência de temas excelentes, fosse impossível crer que um instrumental
ambiental ritmado, quase marcial, trouxesse ainda mais luz a “The Clamouring”, os Twa Corbies aí estariam para o
contrário provar com “Leaving Mcclesfield – Not!”, onde as guitarras obsessivas
de ambos tecem uma espécie de tapeçaria anglo-saxónica de memórias mancunianas,
representadas nas vozes que sobrevoam furtivas, a longa frase musical de dois
acordes absolutamente hipnóticos.
E porque há pouco nos lembrávamos dos Crisis, não vá que Tony Wakeford deixe os seus pergaminhos
por mãos alheias – “No Bosses” é assim uma espécie de parte dois de “Against The
Modern World” cruzada com “No Town Hall” da banda punk que fundou com Douglas
Pearce, sendo também mais um degrau conquistado à excelência, que é mantida até
ao final em “Laughing”, uma canção que poderia pertencer à longa lista de
anátemas dos Killing Joke, não fosse a sua belíssima roupagem melódica
dreamy-folk psicadélica. Um final certo e astuto para um disco que se intitula
dos clamores. Talvez ainda reminiscente de analogias com glórias wakefordianas
antigas, como “Media” do lendário “Trees in Winter”, de 1990.
Depois do que escutámos, é bem possível que já não restem
dúvidas sobre a validade e importância do nome de Tony Wakeford na música popular contemporânea, verdadeiro self-made
bardo da infantaria dos que acreditam que ainda podem resistir ao maior embuste
da história das democracias. O mesmo se aplica a Gernot Musch, que como coautor, mostra a habilidade de trazer um
pouco de Golgotha à linha mais arcaizante de Wakeford, criando uma interação verdadeira de trabalho de parceria,
como nem sempre aconteceu neste género, se excluirmos a particular título de
exemplo Boyd Rice com Death in June, ou os Les Joyaux de La Princesse com os
Blood Axis, só para citar uns dos poucos.
Sublinhe-se ainda da parte de Tony Wakeford, o efeito de acervo
composicional, e a capacidade de elaborar com assinalável regularidade, engenho
e talento para se libertar das correntes a que muitos o pareciam condenar. No more bosses – a democracia é um bebé
amordaçado com fita vermelha, ou seja, a arte de criar slogans já não é para
qualquer um. Mesmo num conto de dois corvos.
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