O colectivo
gótico alemão SOPOR AETERNUS AND THE
ENSEMBLE OF SHADOWS lançou no outono passado mais um disco de originais, o décimo
primeiro para ser mais exacto, “Poetica”,
todo ele dedicado à poesia de Edgar Allan Poe, e mais concretamente, à colectânea
“The Raven and Other Poems”, ousadia já várias vezes arriscada por gente tão
díspar como Alan Parsons, os Propaganda, os Manilla Road e Lou Reed, entre
muitos outros. O grande vulto da literatura norte-americana não é propriamente
novidade na discografia do grupo de Anna
Varney Cantodea – antes já tinha sido abordada a sua poesia em discos como “Todeswunsch”
e “Dead Lovers Sarabande”, mas apenas em temas soltos. Neste “Poetica” encontramos toda uma recolha
que se encaixa na perfeição na estética desta estranha agremiação germânica que
há pelo menos um quarto de século se inscreveu na órbita saturnina da música
moderna de intensos (e óbvios) traços góticos.
Embora as edições
dos SOPOR AETERNUS se tornem cada
vez mais alvo da atenção dos grandes colecionadores pela exuberância do seu
acabamento formal, também é certo que os lançamentos se tornaram ultimamente
mais esparsos. Se lembrarmos discos essenciais que constituem memória recente
no acervo criativo dos SOPOR AETERNUS,
tais como “La Chambre D’Écho” ou “Les Fleurs du Mal”, apercebemo-nos de que
muita coisa se passou entretanto e de que estes trabalhos fulcrais no panorama
europeu estão já a alguns anos de distância, embora a sua pertinência se
mantenha inalterável.
A riqueza musical
dos SOPOR AETERNUS pode traduzir-se
em duas palavras – morbidez e sensualidade. Conquanto que esta associação possa
soar perigosa ou passível de grosseiros mal-entendidos, terá sido esta a constante
ao longo destes anos todos. Anna Varney
é mestre em compor narrativas mediúnicas, como se tudo o que envolve as suas
criações se passasse sempre entre o sofrimento do presente obscuro e uma
inquietude na eternidade do além-túmulo que remete de imediato para a ideia de
um constante e avassalador estado de suspensão de alma, de punição e de limbo.
No entanto, e apesar da, por vezes, sufocante atmosfera desenvolvida, parece
sempre existir, digamos, não uma esperança, mas um consolo masoquista no eterno
sofrimento dos danados. A alma humana tem essa prodigiosa elasticidade de se
habituar ao padecimento de uma vida e para além dela, e nesse campo elísio Anna Varney está entre os seus melhores
intérpretes.
Ao escolher a
referência por excelência da poesia feita elegia como Edgar Alan Poe, basicamente
a entidade geradora da noção do conto e do poema góticos, os SOPOR AETERNUS não podiam estar mais a
jogar “em casa” – e assim os temas fluem naturais, quase imediatos, na
associação música-letra. Com efeito, e após o intro de pouco mais de um minuto, com a primeira parte de “Oblong
Box”, tema recorrente neste álbum mas sem palavras, até porque não era
originalmente um poema mas um conto de Poe, surge a adaptação de “Dreamland”.
Assim que soam as
primeiras notas e num andamento lento, somos imediatamente confrontados com a
ambiência clássica de uma ghoststory.Há
madeiras a ranger, há ventos a uivar, enquanto os teclados lúgubres acompanham
o incauto e mesmerizado visitante do poema incluso em “The Raven and Other Poems”
por essas paisagens plenas de contrastes que arrastam a alma para um
deslumbramento mórbido.
São quase quinze
minutos que podem ser escutados em loop,
tal a envolvente conseguida, rara proeza de vates e bardos – tornar o tempo de
uma longa peça quase impercetível para o ouvido mundano, habituado a navegar em
vetustas jangadas da imediatez. Sendo apenas o segundo tema do alinhamento, e
tendo em conta que os quase 80 minutos aproveitáveis do formato cd foram
inteiramente preenchidos com os onze temas, constatamos facilmente que outras
extensas peças nos cruzarão o caminho nesta descida aos mais deslumbrantes
abismos da imaginação poética. Tal como no título…
A versão seguinte
é a do fantástico “ElDorado”, a história do cavaleiro que envelhece na senda do
mítico lugar até que, calvo e quase esgotado, encontra outro cavaleiro sombrio
a quem indaga sobre o Eldorado, obtendo apenas a resposta de que ainda fica
para lá das Montanhas da Lua, e depois descendo o Vale das Sombras… não há
muito a dizer para além do que a composição nos pode impressionar – talvez uma
fugaz manifestação da incrível versatilidade dos SOPOR AETERNUS AND THE ENSEMBLE OF SHADOWS, um tema que parece
encavalitar ritmicamente sobre penedos e florestas agrestes e que se perde no
horizonte por entre laivos momentâneos de musicalidade hispânica.
Um exemplo do
valor da arte maior do grupo de Anna Varney,
e que espevita o interesse desta abordagem, adensando o clima de mistério que
logo segue em frente com “The Sleeper”, de resto um dos melhores escritos de
Poe incluído na referida coletânea de poemas lançada em 1845. O lamento do
sujeito poético na cripta onde jaz a beleza da amada, eternamente em descanso
velado por anjos, parece ser premonitório do que aconteceria ao próprio Poe
quando a sua primeira esposa Virginia Clemm, catorze anos mais nova, morre na
flor da idade.
À parte alguma
previsibilidade que pode decorrer da temática quase ultra-romântica antes do
tempo, dado que Poe é contemporâneo da primeira vaga do Romantismo de sabor
gótico, além do mais, no Novo Mundo, a adaptação do tema pelo coletivo alemão é
de tal forma sugestiva e quase cinematográfica, que dificilmente vislumbramos
outro modo de o musicar – uma espécie de desfile fúnebre, ocasionalmente pontilhado
por motivos patéticos que traduzem o estado próximo da loucura do que se
prostra junto da pira tumular e encomenda extático a beleza imóvel no sono
perpétuo à proteção divina, prece tão bem traduzida pelas frases melódicas do
sintetizador que parece refletir o som da eternidade. E mais uma vez, assim
passámos onze minutos…
O tema seguinte é
o fabuloso “Alone”, que terá mais à frente um contraponto instrumental de mais
de sete minutos, aspecto que, apesar de irrepreensivelmente executado, poderá
ser um ponto fraco no alinhamento do álbum, visto mesmo como “filler”, já que
esta primeira parte é praticamente perfeita – o poema que fechava o alinhamento
de “The Raven” e no qual o poeta adivinha finalmente na sua originalidade, na
sua unicidade e obstinada individualidade, uma maldição que o atormenta desde a
infância, como uma nuvem negra tornada demónio sempre presente na sua visão.
Nunca será demais sublinhar a particular força interpretativa a qual Anna Varney se entrega totalmente nesta
adaptação de “Alone”.
Entretanto,
entrámos já na macabra “The Conqueror Worm” – animada pelo contraste de uma
toada mais gothic-pop, Varney reinterpreta a saga do pobre
corpo humano que sem vida se rende ao verme conquistador. Neste tema de porte
médio, comparativamente às peças de resistência incluídas em “Poetica”, tem-se igualmente a visão de
conjunto da herança gótica que os SOPOR
AETERNUS carregam, e que tanto pode fazer referência aos CHRISTIAN DEATH da
fase intermédia ainda com Rozz Williams, como pode mesmo recuar mais no tempo e
citar KLAUS NOMI, obviamente menos o esplendor histriónico operático, mas com a
mesma carga de ironia sobre a condição humana, simultaneamente sarcásticos e
apaixonados pela forma e conteúdo da criatura mais complexa do planeta.
Tudo passa e
assim passa a versão instrumental de “Alone”, na sua beleza estrutural e no seu
acervo técnico, música para tertúlias solitárias à lareira, no silêncioda noite
invernal – não seria estritamente fundamental, mas como acontece sempre com os SOPOR AETERNUS, tem aquele ingrediente
quase hipnótico e macabro que não nos deixa afastar nem olhos nem ouvidos…
O alinhamento do
álbum desenvolve para o seu terço final e a atmosfera inicial opressora de “The
City In The Sea” deixa adivinhar mais um pedaço de pesadelo nos seus mais de
dez minutos. Sem dúvida um dos mais perturbantes poemas de Poe e um dos
melhores neste alinhamento de tributo que Anna
Varney e restantes companheiros conseguem repor, com inegável mestria,
recontando a cidade que a Morte moldou em recônditas paragens marítimas, onde
nenhuma luz divina rebrilha, descrição fantástica do imaginário reino dos
mortos, que por fim o Inferno, emergente de mil tronos, vem reclamar numa onda
gigante de vermelho sangue. A interpretação de Anna será aqui de longe a melhor, num estado de transe em que a
cegueira do pavor vê mais fundo que a frieza racional do literato, tornando
este momento de “Poetica”
verdadeiramente inspirador e revelador da cíclica grandeza dos escritos de
Edgar Alan Poe, que só pode ser considerado mesmo um emissário tradutor de uma
potestade de dimensão universal.
Depois da segunda
parte do curto instrumental “The Oblong Box”, surge a adaptação de “The Haunted
Palace”. Outra longa peça de dez minutos e uma superior reposição do poema
fortemente cinematográfico (50 anos antes do cinema!), onde Poe fala sobre um
maravilhoso palácio e dum monarca em tempos bem-aventurado, cujos domínios,
contaminados por “vestes de sofrimento” e ignomínia, se tornaram com o tempo num
lúgubre lugar de maldição.
Aqui, mais uma
vez, o ensemble de músicos de escol, à volta de Varney, assoberbam-se com justeza para construir uma narrativa
sublime que sustem de modo incomparável a imaginação do ouvinte, nos últimos
minutos deste excelente disco do ano passado que vai fechar com “Dream Within A
Dream”, que os compatriotas alemães PROPAGANDA já tão bem tinham repegado há
praticamente 30 anos, e, embora não seja de longe a melhor faixa de “Poetica”, Anna Varney e os SOPOR AETERNUS
conseguem mais uma vez encontrar o portal de passagem para o mundo espectral de
Poe.
Digamos de
passagem que a versão dos PROPAGANDA continua por assim dizer imbatível, mas
atendendo ao que o grupo de Varney
alcançou nas interpretações que ficam atrás, justiça lhes seja feita que
merecem a distinção e o nosso voto de confiança.
Sobre Edgar Alan
Poe, já foi tudo dito e feito, mas contudo haverá sempre essa urgência de lhe
agradecer os ensinamentos de, através da poesia e narrativa fantásticas, termos
a obrigação de entender que a vida e a morte estarão sempre de mãos dadas na
dimensão da criação literária, e que por esta poderemos esculpir da maneira que
melhor nos agradar, o horror ou a felicidade de conhecermos a ambas de forma
intensa e vivida.
Quanto aos
alemães SOPOR AETERNUS, e ao cabo de
25 anos em que Anna Varney nos
ensinou que o pranto também pode ser uma forma de cantar sublime, só nos resta
reconhecer a sua importância da música moderna europeia, vulto negro admirável
que como uma velha árvore quase moribunda, se impõe majestosamente no centro
geográfico de uma longa tradição de histórias de horror, mistério e, acima de
tudo, Imaginação.