terça-feira, 3 de abril de 2012

Café Europa apresenta : KIRLIAN CAMERA – “Night Glory”, 2011

Há grupos musicais que resistem sempre; grupos sobre quem os anos não parecem passar, mesmo que já tenham excedido as décadas da praxe que levam ao Olimpo dos clássicos, mesmo quando são oriundos dum país do qual se fala pouco na imprensa mainstream especializada, ou na web. Um país com grandes responsabilidades na história da música erudita ou popular, um país intensamente musical, do qual sempre ouvimos dizer que não havia italiano que não soubesse cantar ou tocar! A Itália é uma das pátrias da Música e ponto final. Ou pelo menos assim o foi … e voltou a sê-lo, concretamente em matéria de música moderna.         
Na primeira metade dos anos 80, a bota transalpina começou a marchar sem cessar – e dois nomes marcaram territórios próprios nessa altura, os ainda muito primitivos Ataraxia (que teriam de passar anos de dificuldades e tragédias pessoais até ao reconhecimento), e os obscuros e enigmáticos Ain Soph, últimos cabalistas e matinais mágicos da música ambiental, dos quais cada novo trabalho mais parecia um tratado alquímico de grandes implicações… mas havia também espaço para outro projecto, fortemente alicerçado na música electrónica de dança, que inclusive já conquistara um lugar cativo na atenção dos media, insaciáveis de sensações fortes e de maravilhas de um só êxito. Chamavam-se KIRLIAN CAMERA e em suma o seu som traduzia-se por uma aproximação musculada ao electro – pop de sintetizadores que de repente tinham ficado ao alcance de todas as bolsas.
A figura axial era Angelo Bergamini, jovem de poucas falas, de semblante sisudo e impenetrável, mas determinado a seguir em frente com vontade de ferro. Não vamos aqui reconstituir a carreira de mais de 32 anos dos KIRLIAN CAMERA, mas sempre valerá a pena resumir o seguinte – não fosse a tenaz autoconfiança de Bergamini, há muito que seriam apenas esquecimento. Como é hábito, após os 15 minutos de fama relativa, a euforia da sociedade de consumo dissipa-se e de seguida a máquina que sustenta todo esse universo promocional capitalista cospe a vítima cá para fora, para se estatelar no cimento tosco da garagem onde tudo começou. É aqui que o momento da decisão se dá, e são raros os artistas que se erguem de novo. Bergamini provou ser um entre poucos.    
Após os álbuns iniciais, abertamente techno pop com nuances darkwave, há uma fase mais cinzenta que se transmuta já no início da década de 90 quando as propostas estéticas se tornam mais objectivas em álbuns como “Schmerz” e “Erinnerung” títulos em alemão que conferem a Angelo Bergamini o dom da perspicácia ao formularem o nexo das suas propostas musicais apontado ao mercado germânico. Dez anos volvidos, e após quase outros tantos discos lançados, os KIRLIAN CAMERA encontravam-se já prontos para iniciar uma nova fase da sua existência, que os coloca entre as mais bem oleadas máquinas de música popular moderna e os nomes mais consagrados deste presente futurista que nos chega num instante pela rede global de que falavam os autores de antecipação distópica desde Herbert George Wells, Aldous Huxley e George Orwell. Para os KIRLIAN CAMERA, o futuro chegou… anteontem.
Uma pantera negra na capa e um título como “Night Glory”, pode soar mal, pode soar pessimamente – a uma saída nocturna para mais tarde lamentar, pode soar a martelinhos de Ibiza, pode mesmo fazer suar até mais não… e por isso, depois de álbuns como “Invisible Front 2005”, “Coroner’s Sun” e “Held V Shadow Mission”, ao já acostumado fã de KIRLIAN CAMERA é lícito franzir a testa e torcer o nariz. Mas haverá um propósito secreto para tal como adiante se verá…             
Até ao momento, omitimos de propósito o nome de Elena Fossi; foi, em parte, graças a ela que, a partir de 2000, se operou esta grande mudança no som da banda. Foi ela que, com a sua eloquência mista de top model e de agente secreta, e voz de foragida de colégio de freiras, a partir do álbum “Still Air”, renovou o garbo da música dos KIRLIAN CAMERA, tornando-os referência europeia incontornável. “Night Glory” começa com 45 segundos de piano que mais parecem um daqueles pequenos prelúdios de Bach, assente em progressões tonais, esboço de uma invenção, sob narração cantada em forma de lamento nocturno, onde se debita uma interessante história:
- Um menino nascido numa jaula cheia de escárnio, foi para a escola, onde cedo percebeu que teria de lidar com tolos que o achavam perigoso; depois de peripécias chave, descritas num innuendo de Magia, o rapaz, que vivia numa casa, num bosque, sente que só a Música o pode libertar de tal tirania de destino e lá consegue um contrato com uma editora: radiante, passa os dias a escrever canções, até que se apercebe, após anos de trabalho, que os senhores da editora tinham sempre usado uma máscara e que por baixo dela estavam… os seus antigos colegas de escola. Decide por isso liquidá-los e voltar ao seu bosque mágico para fazer música só para ele, para as libelinhas e esquilos, e para a menina do baloiço…
Quem chegou agora e nos ouve narrar este conto, desde que se lembre dos KIRLIAN CAMERA, identifica de imediato a história de vida de Angelo Bergamini e conclui que “Night Glory” poderá bem ser um aborrecido álbum autobiográfico, e que a menina do baloiço, na contraluz do horizonte ao pôr-do-sol, não é outra senão a bela Elena Alice Fossi. Comparações aqui com Santana Lopes e o Menino Guerreiro não colhem até porque desta singela parábola há uma vontade genuína em avisar os outros músicos a nunca vender a alma a diabretes hematófagos, e não um simples lamber de feridas. De resto, aqui os prelúdios são ao piano e não com violino…
A toada central de “Night Glory” é a de uma certa reconciliação com o som eurotechnopop sofisticado, preenchido por arranjos e orquestrações sintéticas de grande impacto, recheados de modulações melódicas por vezes arrebatadoras, o que torna o disco imensamente agradável de se ouvir, quase sempre um pouco como pano de fundo aglutinador para gáudio e trabalho do ouvinte, como acontece neste preciso momento. Elena Fossi não possui uma grande voz, as líricas de ambos não são exactamente dignas de Dante e Petrarca (como já referimos a propósito dos Camerata Mediolanense), e no overall do álbum existe uma inquestionável sensação de dejá vu, uma certeza algo desmotivadora do sentido da descoberta à partida para a sua audição. Mas de uma coisa podemos todos ter a certeza – Angelo Bergamini não é homem para desistir da sua missão, do princípio ao fim, seja ela uma missão-sombra de espionagem ou uma virtual viagem sideral, ou um pouco das duas, como parece ser o caso dos últimos quatro álbuns dos KIRLIAN CAMERA.
Em “Night Glory”, o círculo fecha-se como numa peça, e o menino do tema de abertura “I’m not Sorry”, condenado à morte pelo seu crime de justa vingança, descobre a razão do seu destino humano, num assomo de híper-lucidez, com todas as contradições da alma, num fecho que se começa a desenhar em “Immortal”, depois em “I gave you wings, I gave you death”, e finalmente na suite “Black Tiger Rising / Gethsemani”, esta última uma cover impressionante do original de Tim Rice e Andrew Lloyd Webber, incluído em Jesus Christ Superstar.  E é aqui que, depois de bem lidas as letras, os paralelismos negros entre esta ópera rock e “Night Glory” vão-se lentamente denotando…para uns é o adeus final aos KIRLIAN CAMERA, para outros, mais um capítulo de curiosidade e interesse. Dirão os adversários que este é um disco falhado pela pompa digital e pela falta de ideias; responda-se-lhes que a música popular moderna se tornou numa parente próxima do ilusionismo e que o puro entretenimento não dispensa nunca uma certa representação do irreal fantástico, projectada sobre as cabeças da multidão, mas para lá das paredes da caverna. Dirão ainda que o efeito “dinossáurio” e o efeito “decadência” entraram já na fórmula química que compõe a dieta de estúdio do grupo; relembre-se-lhes que nessa acepção de ideias ninguém pode ter direito a reforma e a encerrar uma carreira de vida com a dignidade que sempre procurou, e ainda mais se tratando de artistas da música popular, um género que teve sempre a nobre missão paralela de fazer chegar ideais junto daqueles a quem foram ocultados ou negados. Neste caso o longo tempo de permanência até tem uma função benéfica.
Finalmente, os cínicos tentarão dar a estocada final – quando uma banda se deita a fazer versões dos Ultravox  e de uma ópera rock como Jesus Christ Superstar, está condenada. Pois então é mandá-los escutar bem essas covers de “Hymns” e “Gethsemani” e deixá-los cozer lentamente na fervura da surpresa – os KIRLIAN CAMERA tornam emocionantes, tanto esse tema do álbum “Quartet” do grupo do famigerado Midge Ure, como também o momento em que Cristo estabeleceu um diálogo interior de conflito, dúvida e angústia, no jardim de Gethsemani, enquanto os apóstolos dormem o sono dos justos na referida ópera rock…
Contudo, e após audição repetida e atenta, ficarão algumas sementes de dúvida: se “Invisible Front 2005” e “Coroner’s Sun” foram trabalhos de charneira, peças fundamentais da música pop electrónica com ADN industrial, para a primeira década do século XXI, e se “Held V Shadow Mission” constituiu uma divertida picardia, ampliação lógica de alguns bem conseguidos “exageros tecnológicos” patentes nos seus antecessores, e se a vida continua para os lados dos side projects de Elena como o são os Stalingrad, os Siderarctica e os recentes Spectra Paris, então, qual será o futuro de KIRLIAN CAMERA? À parte a absurdez da pergunta para a qual nunca houve resposta, fosse qual fosse o sujeito, é certo que, para uma banda cujo futuro começou “antes de ontem”, o problema não se põe – qualquer que seja a resposta, não chegarão lá atrasados porque levam já um avanço considerável, incólumes do tempo, cavalgando o tigre, como diria Julius Evola.
(texto de João Carlos Silva)

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