terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Café Europa apresenta: X-TG "Desertshore / The Final Report" part.I


X-TG "Desertshore" 
Industrial Records, 2012
Assistir à demolição de dois edifícios – como já tivemos a oportunidade de ver, globalmente e em tempo real – pode ser um dos eventos mais traumáticos da nossa existência. Tanto maior será o trauma se soubermos que com a derrocada do betão, vidas inocentes são sacrificadas. Dizem uns, em nome de um deus menor, outros, em nome do dinheiro. Feita a transposição mental para o objecto desta prosa para a emissão desta noite no CE, será necessário manter o sangue-frio e afastados os vapores inebriantes do fascismo emocional que regra geral condimenta parti-pris e tomadas de consciência mais ou menos preconceituosas. “Desert Shore – The  Final Report” não é um disco dos Throbbing Gristle, embora tenha sido, em tempos relativamente recentes, uma hipótese com a velha formação que revolucionou o mundo da música moderna. É uma obra de colectivo para homenagear o falecido companheiro Peter ‘Sleazy’ Christopherson, que cessou de existir biologicamente em 25 de Novembro de 2010, mas cuja obra permanece intacta como tesouro inesgotável de maravilhas sonoras, com os Coil, com os Soi Song , com o Threshold Houseboys Choir, ou nos primeiros discos dos Psychic TV de Genesis P Orridge e, acima de tudo, com a lendária tetralogia de estúdio dos Throbbing Gristle entre 1977 e 81. Sleazy morreu, e tudo mudou depois.
Nesse estranho mês de novembro de 2010, a hipótese de ver os TG com a equipa original no nosso país foi de repente quebrada pela reprise de um velho amoque entre Genesis e o casal Chris Carter/ Cosey Fanni Tutti. Em 2007, aquando do lançamento do fantástico disco de regresso “Part 2 The Endless Knot”, perspectivava-se uma nova idade de ouro para antigos e novos aficionados do universo TG – a força plástica desse disco não foi infelizmente devidamente prosseguida. No entanto, preparava-se entre Sleazy e Genesis P.O. um projecto que poderia ainda salvar uma reputação basilar – enquanto ultimavam todos o sucessor de Thee endless knot, que se chamaria The Third mind movements , nascia a ideia de recrear “Desertshore” na sua totalidade, o álbum-referência de Nico, e um dos unanimemente favoritos dos T.G. Na digressão que apresentou “3rd Mind Movements”, já de si um trabalho algo diferente, menos contemporâneo e mais oldschool do que “The Endless Knot” tinha sido, a chamada “Desertshore installation” tomava forma, aparecendo inclusive na edição limitada vinil do seu álbum-gémeo.

Mas, como dissemos, tudo acabou com mais um arrufo e uma morte. No final do ano passado, os sobreviventes desses inverosímeis X-TG, decidiram que o material realizado era demasiado poderoso e valioso para se deixar morrer na prateleira. Chamou-se Antony, chamou-se Marc Almond, também a atriz Sasha Grey, que atrás já trabalhara para David Tibet e C93, assim como o amigo berlinense Blixa Bargeld e outros como Gaspar Noé, e vai de usar e retrabalhar as pistas deixadas por Sleazy e Génesis P.O., com um acabamento de construção impecável, para relembrar bem alto o génio de Peter Christopherson. Nada de errado e nada de mau até ao momento. Chris and Cosey deverão ter o aval distante de Génesis P.O. para poderem concretizar tal projecto, até porque se trata de um duplo álbum, sendo o segundo as derradeiras gravações dos tais X-TG, empacotadas aqui como “The Final Report”, repescando a gramática que marcou o início do grupo em 75, com as confusões entre 1st e 2nd Anual Report, já para não falar nas velhas K7’s de “Best Of”, em que o volume 2 foi divulgado ao mundo antes do primeiro, tal como nos álbuns. Em 81, quando o grupo actuou pela última vez na Califórnia, dando azo ao lançamento de “Mission of Dead Souls”, também tinham prometido que a missão terminara, mas em 82 a Industrial Records ainda lançou “Journey Through a Body”, um álbum inteiro de inéditos…
Portanto, com os TG ou os ex-TG, nunca se sabe quando imperará o silêncio definitivo. Assim que se ouve a voz de Antony, nos seus maneirismos já gastos, logo a abrir na versão de “Janitor of Lunacy”, receia-se o pior dos bocejos, ou pior ainda, o ataque de desinteresse auditivo que, regra geral, por muito que se teime, nunca nos deixa escutar uma obra imparcialmente até ao fim. Enquanto aquela coisa meio-falsete, meio-ganido entre Bryan Ferry e Nina Simone serpenteia entre as pistas impecavelmente operadas pelos anfitriões, lembramo-nos da prestação fria e hipnótica de Genesis P. Orridge e conclui-se que o segredo da magia nunca esteve na perfeição técnica da entrega, antes na rudeza brutal ou imperfeição impoluta do momento e atitudes criativos. Passado que está Antony a tornar um clássico num momento olvidável, temos Blixa Bargeld a atrapalhar “Abschied” – e nesta altura, os cold-feet do embaraço atacam o ouvinte. À segunda, ainda não bateu! Estará o conceito deste disco totalmente errado? Como se não bastasse, entra a insigne actriz Sasha Grey que vai oralizar um interessante mise-en-scène sonoro de Afraid – caramba! Uma das canções que fez de “Desertshore” uma coisa religiosa! – e redescobre-se o potencial sonífero de fortes recortes hipnóticos de uma abordagem semi-dub, sem dúvida um piscar de olho pouco convidativo ao velho conceito T.G. de ZyklonBzombie. Aqui, o escriba tem vontade de parar a leitura do CD. Respira fundo e olha para o listing – parece tranquilizar-se um pouco, em função de uma réstia de esperança, já que na continuidade de convidados de honra, segue-se o nome de Marc Almond, cobrindo “The Falconer”. Questiona-se em pensamento, “Será desta?”…
A sedução espiritual induzida em modo sagrado pela voz de Marc Almond tem sido o seu principal argumento, aliado à escolha criteriosa de poetas malditos e compositores proscritos que tem seguido, para consagrar um estilo inimitável de cantar. Se Scott Walker lhe foi em tempos role-model, agora o contrário podia bem ser verdade, sem prejuízo para o autor septuagenário do mirabolante “Bish Bosh”. “The Falconer” é exactamente onde a recriação de “Desertshore”, insufla fortemente para reatear as brasas moribundas na lareira da memória, numa cover que pela primeira vez parece pensar na homenagem sentida a Peter ‘Sleazy’ Christopherson. Acto contínuo, Cosey Fanni Tutti ataca “All That Is My Own” com aquela suavidade gélida com que sempre permeou os registos de CTI e Chris and Cosey e para a teatralidade teutónica industrial de “Mutterlein” reaparece Blixa – desta vez, talvez pelo alento gerado pelas duas últimas covers, até parece que o velho demolidor de prédios novos (sem piada à metáfora que iniciou este relatório) é um convincente contador de histórias. De resto, a expressão da base musical para a versão parece saída de “Heathen Earth”, o que é também um pensamento reconfortante.
Se bem repararam, até ao momento temos estado a fundamentar a nossa visão e audição deste tributo conjunto a Peter Christopherson e a Nico, com base no casamento entre a vocalização das estrelas convidadas e as instrumentações propriamente ditas dos X-TG, pesando bem o efeito de aglutinação e simbiose gerado. Há, no entanto, que sublinhar o esforço atento da produção do casal Carter/Tutti, talvez o aspecto mais forte de todo este pacote de emoções anunciadas, uma aprumo digital impecável e acima de tudo indiciador da mestria da mistura, ideias que decerto terão nascido com o projecto quando ‘Sleazy’ ainda estava vivo. Com seis temas decorridos, o equilíbrio entre o insípido e o interessante não faz justiça ao empenho profissional e emocional evidenciados, e não tenhamos ilusões porque, pelo menos até ao final desta primeira metade do duplo álbum X-TG “Desertshore/The Final Report” as coisas não vão mudar. Gaspar Noé nada adianta em “Le Petit Chevalier”, que no original era interpretado pelo pequeno Ari Boulogne, filho da relação entre Nico e Alain Delon, a não ser uma versão altamente mecanizada, onde se reconhecem sons industriais de há trinta e tal anos – ao menos isso! – de resto a vocalização é a pior de todo o álbum, até mais enfadonha que a de Antony, mesmo que os efeitos cyborg procurem disfarçar a aridez inexpressiva da prestação vocal de Noé. Repetindo o padrão, lá vem um momento mais inspirado – de novo com a patroa Cosey Fanni Tutti, “My Only Child” é, talvez, com a cover de “The Falconer”, assumida por Marc Almond, o grande momento deste “Desertshore” reinterpretado pelos ex-TG. Segue-se uma melopeia conjunta, com efeitos e leituras algo indecifráveis, atribuída às “Desertshore Voices”, que incluem Chris Connelly, Bee, Tibet, Drew McDowell, Daniel Miller, Stephen Thrower, entre outros dos que colaboraram e trabalharam a sério em vida com ‘Sleazy’, para além dos anfitriões da homenagem, só para citar os mais meritoriamente conhecidos, numa imagem sónica de bons augúrios para a prossecução de glória de um Artista tão grande com a vida ela própria, de um homem que, oriundo da aristocracia britânica, optou por seguir o seu próprio caminho de risco, navegando sempre com a segurança de uma vela na tempestade, entre as gigantes ondas do preconceito, da irremediável tacanhez, da corrupção, da estupidez disfarçada de pragmatismo, e da inveja. A propósito deste tema, por momentos, e se não fosse a lista não incluir o nome do também malogrado Jhonn Balance, estaríamos tentados a jurar a pés juntos que, ou se trata de alucinação auditiva, ou vontade dos autores em não o revelar, mas, entre todas as vozes que de Peter Christopherson se despedem, aos 2m29s, há uma voz muito familiar que diz qualquer coisa como “he who knows me may pass on beyond, and meet me on a desert shore”.
Em suma, um disco de qualidade, cujos elevados propósitos humanos justificam, à priori, uma dedicação incondicional, uma audição atenta, repetidas quantas vezes necessárias, para digerir uma ou outra incongruência e, a meio de um percurso para o fim do qual falta ainda ouvir o disco que encerra a história conhecida dos Throbbing Gristle, ter fé que o adeus final possa só ser um êxtase e não uma agonia. 
Peter Martin Christopherson, o filho de Lady Frances Tearle Christopherson e de Sir Derman Christopherson, reitor do Magdalene College, de Cambridge, ‘Sleazy’ Christopherson como mundialmente se tornou famoso pela capas que ajudou a conceber para grupos como os Pink Floyd, Genesis e Peter Gabriel, ou ainda os Van der Graaf Generator, entre muitos outros clientes da Hipgnosis, pelos vídeos que realizou profissionalmente para a então emergente MTV, criando um paradigma de revolução estética num negócio de milhões, pela objectiva crua e dura que impôs à fotografia no último quartel do século XX, mas sobretudo pela música e sons que criou ao longo de 35 anos, merecerá e muito este e todos os outros tributos que possam acontecer no futuro.
O afastamento de Genesis P. Orridge dos TG e X-TG nada tem a ver com isto, nunca foi motivado por desavenças com ‘Sleazy’. Numa unidade criativa chega sempre o dia em que cada um vai à sua vida; se aconteceu com os Beatles, ainda não aconteceu com os Stones, se ainda não aconteceu com os Laibach, lamenta-se com pesar que a missão dos Throbbing Gristle tenha terminado…uma vez mais.

Na próxima semana no Café Europa, The Final Report by X-TG.

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