segunda-feira, 27 de maio de 2013

Café Europa Apresenta: The Green Man - “Musick Without Tears” Itália, Hau Ruck! SPQR ‎– HR!SPQR XXVI, 2012



Esta noite no destaque central do Café europa, o mais recente trabalho dos italianos THE GREEN MAN.
Numa discografia assaz reduzida e com uma existência já de dez anos, torna-se complicado não ceder ao benefício da dúvida e assim prestar atenção sempre que o dueto – agora trio – italiano se digna a gravar um disco. Isto apenas em teoria, porque, na realidade, a questão nem sequer se põe, sobretudo para quem já os conhece bem como por aqui no Café Europa.
Em 2005 lançaram o surpreendentemente misterioso “From Irem To Summerisles” e, dois anos depois, “The Teacher and the Man of Lie”, que muitos vêm como o seu momento de verdade e de viragem para uma estatura mítica. Entretanto. tinha saído o 10’’ “Irem”, para apimentar a aura à volta do grupo que muitos também consideravam um cruzamento de AIN SOPH e de SPIRITUAL FRONT. A veia ritualística dos THE GREEN MAN está sempre muito presente, não em recheio supérfluo, mas em referências sagazes, bem colocadas no panorama evolutivo da história da música popular dos últimos 50 anos.
Dizer que os dois álbuns anteriores são mágicos é dizer pouco – são a essência da magia feita música – envolventes, propiciadores da ilusão realmente sentida de que, na sua audição, o tempo não importa, deixa quase de fazer sentido, através de um trabalho minuciosos de composição e interpretação, já para não falar na produção, às vezes modesta mas sempre eficaz. Por momentos hesitámos em não dizer “montagem” em vez de “produção” ou “mistura”. Mas, mesmo assim, eram outros tempos. Com a crise global europeia, não deve ser nada fácil continuar a gravar música como a dos THE GREEN MAN. E, assim sendo, terão eles conseguido manter os resultados da receita acima neste “Musick Without Tears”?
Justiça lhes seja feita que não só conseguiram como, igualmente o superaram, em todas as vertentes. O estranho trio, liderado por essa voz misteriosa que é a de Eliahu Giudice, terá mesmo produzido nesse final de ano de 2012 o disco mais motivante para escutar durante o ano seguinte, já que a sua distribuição é relativamente recente. “Musick Without Tears” é outro daqueles trabalhos que não dá quartel.
Musicalmente, THE GREEN MAN vêm construindo um caminho próprio, mas em vez de radicalizarem o seu discurso e a sua estética, ou mesmo apostado no acentuar da imprevisibilidade como sempre foi apanágio de algumas bandas italianas suas congéneres, caso dos lendários AIN SOPH ou TEATRO SATANICO, optaram pela estrada iluminada da música consensual, sem perder pitada dos seus desígnios manifestamente mágicos.
O disco começa com uma sólida canção ao estilo de Syd Barrett, dos tempos dos álbuns solo fora dos Pink Floyd – aliás, a influência positiva do bardo de “Long Gone” é bastante transversal neste terceiro disco dos THE GREEN MAN. “Horus Calling” fala-nos de três espíritos que se juntaram na beleza de uma só chama branca, numa referência ao episódio da iluminação de Crowley no Cairo em 1904. “ A justiça que ultrapassa a vergonha, a vitória e o esplendor…” – com tal mote e uma poética que faz justiça ao mentor de tais palavras (porque não haja dúvida que estamos em presença de uma banda telemita), desenvolvem uma canção singela que estaria bem tanto em “Their Satanic Majesties Request” como em “The Piper At The Gates of Dawn” … e aqui há que fazer a ressalva – se Eliahu é o cérebro por detrás da voz e poesia dos THE GREEN MAN, a destreza musical pertence toda a Marco Garegnani, que opera maravilhas neste novo álbum, ultrapassando de longe o seu anterior registo de 2007, evidenciando um salto qualitativo imenso na progressão observável na carreira de um Músico com M maiúsculo. Os temas seguintes, como “Cefalu” (que se explica a si mesmo, na óptica filológica do legado crowleyano), imprimem o mesmo rigor enciclopédico – há aqui referências cruzadas a glórias passadas da música popular moderna, como os FELT, os momentos mais doces dos JESUS AND MARY CHAIN, os melhores álbuns a solo de JULIAN COPE – mas nunca descurando o lado hermético da expressão musical, um conceito talvez impossível de explicar mas que se aproxima da ideia de construir paulatinamente um tema, escondendo da visão imediata do ouvinte as marcas óbvias da referência central, induzindo os seus sentidos em piloto automático para a revelação oculta do todo que as palavras guardam, só até ao momento em que estas desvelam com subtil elegância e ritual, a sua verdade e perfeição.
Podemos ainda mais sentir esta ascese em “Blindness is Bliss”, no qual participa Patrick Leagas dos 6th COMM, e um ex DEATH IN JUNE para sempre, a que não é totalmente alheia a toada oriental da música, na qual ambas as vozes de Eliahu e Leagas soam em momentos quase canalizando o timbre de Ian Curtis. É deveras um dos momentos mais arrepiantes de “Musick Without Tears”, nove minutos de magia em estado puro.
Convém, a páginas tantas, referir que o distinto lote de convidados não só inclui o já mencionado Patrick Leagas, mas também Nicholas Tesluk, guitarrista dos veteranos Changes e a surpreendente Geneviève Pasquier, ex-femme fatale dos industrialistas alemães THOROFON, antes de se estabelecer em seu nome para efeitos ainda mais visíveis nos últimos anos. Para além deste camarote de vips, há a sublinhar os notáveis trabalhos de Carlo Gilardi em trompete, Francesca Croti no violino, e Gianluca Becuzzi nos diversos samples e bruitage que embelezam a totalidade de “Musick Without Tears”.
Mas voltando ao desfile, seguem-se “At Stockholm”, com poema do próprio Crowley, com ligeiras adaptações de Eliahu, numa peculiar referência estilística que em tudo faz lembrar a encarnação dos alemães AMON DUUL II ou o que deles restava, no seu exílio britânico nos meados dos anos 80 em que passaram a ser conhecidos por AMON DUUL UK – a ginástica musical de Marco Garegnani até para isso dá, complementado pela voz adocicada de Chiara Alice Lorenzini que passou a ter lugar residente nos THE GREEN MAN. No tema seguinte, “Chat Blanc”, é que Geneviève Pasquier joga todos os seus trunfos de miseur en scène – num tema jazzy, bem fumarento e decadente, com uma letra que fala de vestidos de griffe Coco Channel, de golpes sobre estrelas prateadas e de Picasso, Rodin, Renoir, Van Gogh, e da fada do absinto que tornou o sangue da protagonista verde-claro … outro dos momentos de antologia deste disco que não pára e não nos deixa de surpreender. “In The Desert Chaos Loved Me With A Knife” tem reflexos de Hugh Cornwell nos momentos mais elevados dos STRANGLERS, mas remete de igual modo para os dois discos anteriores dos THE GREEN MAN, numa composição mais seca e cortante, enquanto que “Freedom Is A Two Edged Sword” traz um instrumental que nos corta a respiração – agarremo-nos bem à cadeira porque são quase cinco minutos de pura BANDA DO CASACO, folk progressivo sustentado por um diálogo inesquecível entre grande piano, guitarras e violino, que nos leva por montes e vales até … à City, coração das trevas, e à rua de sentido único em Londres mandada construir pelos Cavaleiros Templários e que tem o nome de Chancery Lane, desde os meados do século XIX viveiro de escritórios de advogados e solicitadores que se entretêm também em reuniões sobre mosaicos pretos e brancos. “67-69 Chancery Lane” recupera uma velha singalong dos pubs, mas introduz-lhe alguma ironia somente um pouco reveladora, apontando quiçá para as mudanças forçadas de poiso de alguns elementos da Aurora Dourada, alguns bons anos depois de 1888, quando a reputação da Ordem já andava algo contaminada pelas distorcidas visões que alguma opinião pública vitoriana lhe votava. A voz e interpretação de Eliahu são aqui impressionantemente barrettianas, ao que acresce uma edição de som algo modificada para o efeito.
O disco que recolocou THE GREEN MAN no mapa da nova música, sob o radar ávido de uma nova geração de manates de música, está praticamente no fim e ainda restam dois momentos de impacto – primeiro “(Sweet) Kandy”, uma balada pop à maneira dos VELVET UNDERGROUND, triste mas satisfeita, envolta em pura nostalgia de uma vida que se esvai, no cosmos, enquanto o próprio Jesus abençoa esta partida com um beijo na testa, a voz de Chiara Lorenzini a dar o tom frágil ao modo de cana rachada de Maureen Tucker.
“Tetelesthai”, expressão que em grego é equivalente da latina Consumatum est, revela-nos que o caminho está pelo menos apontado, a direcção bem exposta. As líricas declamadas por Eliahu dividem-se em dois momentos – na primeira parte do tema, lúgubre, apocalíptico, infernal, acompanhado ao piano e violinos, a segunda depois de um longo silêncio, na faixa escondida que desvela um final trágico para isto tudo, pela mão do seu autor … famous last words – I shall come again! O desastre do Homem está consumado e mesmo assim ele promete voltar. No mínimo irónico que o álbum que promete Música sem Lágrimas termine desta forma, mimetizando bem a estratégia do Enganador, e a ténue esperança do ludibriado que nos acompanha desde a aurora dos tempos. A Libertação tem um preço que poucos estão prontos a pagar. Por alguma razão, o realizador Kenneth Anger é um dos homenageados neste disco.
Conquanto a aura final deste terceiro álbum dos Italianos THE GREEN MAN seja negra como breu, não há volta a dar-lhe – trata-se de um dos mais inspirados e inspiradores discos de 2012-2013 e grande erro seria não o descobrir e ouvir, tal como esta noite aconteceu no Café Europa. 

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