quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Café Europa apresenta: Café de L'Enfer "Marchant à Quatre Pattes au-devant de la Rédemption" Digipak CD 2011, Steinklang Industries

A temática erótica e hedonista do projecto Café de L’Enfer, enquanto diminuto véu transparente disposto sobre a referência explícita dos termos, consegue garantir às canções presentes no álbum “Marchant à 4 pattes au devant de la redemption” um magnetismo para a nossa concupiscência. Se o projecto, actualmente residente na Áustria, tem origens francesas, melhor se enquadra no revivalismo estético e artístico desse fim do século XIX, em que existiu mesmo em Paris um café cabaret com esse nome – Café de L’enfer, com uma sumptuosa fachada e decoração escultóricas verdadeiramente vertiginosas e assombrosas, monumentos à perdição humana, isenta de quaisquer lastros morais.

Situado em Pigalle, Place Blanche, Boulevard de Clichy, nas vizinhanças do Moulin Rouge, e onde hoje se encontra ironicamente, um hipermercado MonoPrix, para além da voluptuosa e macabra decoração, o Café de L’Enfer exibia frequentemente uma programação cuja temática se adivinhava pela sugestiva descrição dos seus conteúdos.
“Todas as noites das 8.30 às 2 da manhã – atracções diabólicas : Suplício dos malditos; Ronda dos condenados, A FORNALHA, a metamorfose dos malditos, etc. etc. , …”

Se não fosse pelo internacionalmente reconhecido requinte parisiense em exaltar a decadência elegante no entretenimento nocturno, e poder-se-ia confundir esta temática por qualquer outra coisa… De resto, tudo se encaixava perfeitamente no espírito da época, no primeiro grande apogeu da Revolução Industrial, da nova escravidão aos assomos pretensiosos de uma civilização dita superior afundada na mais negra depressão de absinto, civilização assoberbada que Eça de Queirós tão fielmente retrata nos episódios parisienses de A Cidade e as Serras.

De volta ao século XXI, - e não querendo generalizar conclusões precipitadas – o pano de fundo parece ser o mesmo, apenas com novas roupagens e gadgets de mise en scène, mais fáceis de usar que a mesa articulada de Jacinto . Perante um novo apogeu decadentista – desta vez neo-liberal e financeiro…- estamos de novo a marchar a 4 patas de fronte da redenção.
Por seu lado, o movimento musical neo-clássico e decadentista que se iniciou na Europa Unida por altura da queda de um dos seus mais notórios símbolos de separação, sugere estar cada vez mais próximo do momento do seu saudosismo – paradoxalmente!...
A música de Marchant a 4 pattes au devant de la redemption  dos Café de L’enfer parece anunciar a antecâmara da futura desunião, em que após a dissolução das instituições socioeconómicas soçobrará mais fundo a fundamentação ética, sempre sob pano de fundo hedonista. Não nos queremos deitar a adivinhar, mas parece-nos que há mais intenções por detrás da simples reposição histórica! Musicalmente, a toada neo-clássica é decorada por texturas e rítmicas pós-industriais, aqui e ali mais militaristas mas nunca alinhando no marcialismo estéril de alguns projectos musicais europeus recentes.

Há uma constante vontade de condimentar o programa do novo Café de L’enfer com laivos cinematográficos e como se não bastasse, num dos temas, (Messaline) surge impecável a narrativa na voz do actor australiano Max Wearing, membro honorário dos Death in June. As vozes principais, masculina e femininas, estão também perfeitamente enquadradas nos cânones do género, expressivas e carregadas de intensidade dramática, se bem que transmitindo alguma força de determinação naquilo que é o ponto fulcral da sua temática, a vontade permanente da rebelião de costumes, do hedonismo, da exaltação da volúpia, como manifesto supremo da essência humana. Tudo o que foi dito sobre Baudelaire, de Sade e Isidore Ducasse, faz-se repetir aqui, se bem que ainda estamos no domínio da literariedade, duma refinada ficção baseada, isso sim, em factos reais.

Haverá apenas a referir como ponto fraco do álbum uma certa colagem a memórias como a dos Elend, Regarde Extrême ou a dos saudosos Eros Necropsique, ou mesmo certas passagens recordando Les Affres de la Mort, talvez pela entoação vocal, mas não é mester desta passagem no Café Europa assentar a sua divulgação sobre analogias, como as que terão de imediato apontado referências outras como Les Joyaux de la Princesse ou Dernière Volonté, a nosso ver bem longe da mouche.

Há um uso imenso de teclados, o que por si só não é crime – sê-lo-ia se fossem mal utilizados, o que não é o caso, só que estaria provavelmente mais que na hora de renovar soluções para este género musical que só pode viver da verosimilhança; por vezes quando a recriação autêntica de ambientes não é possível, por implicar o uso de orquestras ou de instrumentos de orquestras reais, cujo domínio não estará ao alcance de todos, por isso mesmo, assistimos nas duas últimas décadas à amostragem massiva sem preconceitos de excertos orquestrais clássicos e contemporâneos, que parecem aqui ter sido evitados em nome da originalidade. Em suma, um balanço equilibrado e positivo, num álbum que, se calhar felizmente, não colherá maioritariamente à primeira. É bom não esquecer a qualidade dos discos que vão crescendo com o tempo, desconfiando, enfim, só um pouco, das conquistas coup de foudre, de combustão espontânea. Dentro de meses, confirmaremos ou não se se trata deveras de uma das melhores promessas vindas da Europa em tempos mais recentes – resta aos cínicos atestar que isso não é afinal de contas muito difícil, porque a Europa não está longe de ser de novo um inferno…
Texto de João Carlos Silva

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