segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Café Europa Apresenta: GAË BOLG / SILVER LADY "Inclus Concentré de Génie avec des Morceaux Dedans"

Gaë Bolg / Silver Lady : Inclus concentré de génie avec des morceaux dedans
Ainda estamos sob o manto diáfano do Entrudo e por aí ainda arrasta os cascos uma multidão de faunos indómitos, contra qualquer crise económica, foliões de cruzeiro mediterrânico em maré de azar, com ou sem comandante alcoolizado, ou com ou sem ordem de soltura do infiel de armazém. Ainda assim estamos, mal recuperados da grande intolerância de ponto, e já Gaë Bolg nos dá com outro álbum na cabeça. É mais que um tiro, é uma salva de canhão carnavalesca, “opereta buffa” e inebriante. Mas de quem é este disco, cujo autor aqui se auto-proclama Silver Lady? 
Não é em nome de Eric Roger, não senhora – porque assim se chama o homem, francês e daqueles que escapam a uma certa acomodação ao star system alternativo, quer se chamem Indochine ou Die Form; também não é em nome do próprio Gaë Bolg, alter-ego central numa já vasta discografia, cuja origem remonta a 1999, embora o robusto e prolífero cérebro musical já tivesse estado presente nos álbuns do não menos pesado Tony Wakeford e os seus Sol Invictus, a partir de 95.
Tem recebido, muito meritoriamente, o epíteto de “Goliardo” dos tempos presentes, título que se justifica em pleno em quase todos os seus muitos trabalhos, quase sempre sob nome diferente, de ano para ano e às vezes em questão de meses!!!
Trabalha incessantemente e quase nunca se repete, mantendo contudo um estilo inigualável de cínico “bouffon” das ruas e não da corte Sarkozyana. É, por isso tudo, uma figura incontornável da moderna música francesa e europeia, artista para quem é necessário guardar algum tempo, para que se possa apreciar, degustar, entender em toda a sua amplitude, a arte maior de Eric Gaë Roger Bolg. Não creia o recém-chegado que se trata assim de uma versão actualizada de Gabriel Jacoube e Malicorne, ou de Alain Stivell, só para referir nomes que até aqui chegaram canonizados da música céltica hexagonal. Gaë Bolg está muito para além da reposição séria de cânones seculares, embora enquanto bom “Goliardo”, os trate de surrar com mestria!
Para fazermos a aproximação devida à Silver Lady (que já saiu em 2011 e que mais parece nome de depiladora…), temos que contextualizar a obra recente de Gaë Bolg, saltando por isso sobre os primórdios com os Sol Invictus, e as primeiras aventuras medievais da Church of Fand com discos como "John Barleycorn Must Die", "Tintagel" ou "La Ballade de L’Ankou", ou mesmo a suite de obras primas como "Aucassin et Nicolette" e "Requiem", e os álbuns misteriosos com os Seven Pines , como o são "The Garden of Fand" e "Nympholept", entre outros mais obscuros ("Le Cri" e "Histoire de l’Ours").
Desde 2009 que Gaë nos habituou a uma nova semiótica, em que os traços pseudo-civilizacionais da sociedade tecnológica, no seu aparato meramente utilitário, inter-penetraram toda uma poética satírica das morais e costumes, fazendo por isso a ponte entre o referencial secular e o presente. Não se trata tanto de castigar rindo, à moda vicentina de Barcelos, mas rir do castigo a que todos nós nos vamos suavemente impondo, atendendo cirurgicamente nos pequenos detalhes do quotidiano urbano de conforto. Assim, passa-se de uma “Breve introdução às práticas gimnosóficas” para um “Breve tratado de Gimnosofia”, dois álbuns “tout de suite” em que se pinta a profunda filosofia nos ginásios por essa Europa fora, e ainda para uma Nave de Loucos, que é título fiel do duplo ao vivo que antecedeu a Silver Lady. 


O contexto social e cultural de tal obra é o da maior crise europeia de que temos memória, logo a priori está estabelecido um paradoxo do tamanho de Versalhes! Como é possível ser tão prolífero de ideias, sobre ninharias aparentemente absurdas, em que a temática real está, regra geral, bem subordinada à expressão estética peripatética? Nada de mais fácil explicação! A expressividade musical de Gae Bolg  pode soar apalhaçada, ridícula, mas reflecte um pouco à maneira do génio da pintura James Ensor, o que de horrível está por detrás da máscara com que o quotidiano urbano se protege e se projecta para o espelho mediático.
Criar arte, fazer música e canções nos tempos de um surdo cerco sócio-económico imposto por várias conjunturas sobrepostas, até ao nosso presente, foi invariavelmente apanágio de protesto apaixonado, quase sempre fortemente comprometido ideologicamente com a política clássica. Aqui, esgrima-se de modo diverso, mas sempre irreverente.
Depois de alguns temas em compilações dispersas, o álbum de Silver Lady é na verdade outro projecto lateral colaborativo de Gae Bolg com o misterioso Dr Sin, sendo este provavelmente o seu mais excêntrico alter-ego, propondo uma vasta e colorida colecção de trechos do que já se convencionou chamar de pop orquestral psicadélico traçado de melodias iconoclastas e as constantes vozes operáticas de Gaë, onde pingam sons electrónicos ácidos a qualquer momento. Os criativos da parca distribuição preferem chamar-lhe hits de pista de dança psiquiátrica, o que só vem confirmar a nossa suspeita de que se passou do oito ao oitenta na arte de arranjar tags a martelo para os estilos de música, mania contemporânea que muito diverte o próprio Gaë Bolg. Será isto tudo mas muito mais, ou muito menos, consoante a perspectiva sensacionalista.
Gaë propõe-nos uma dúzia de temas cuja duração parece curiosamente alongar-se para além do tempo real – ouvindo várias vezes seguidas este “Inclus Concentré de Génie avec des Morceaux Dedans" apercebemo-nos de que a formação musical académica de Bolg rende de facto a favor da criação de mais-valias estilísticas que perduram no tempo, que “esticam” aparentemente o tempo psicológico das canções, sem que o artista falhe nos tempos. Um tema de três ou quatro minutos parece ter o dobro e não é por ser aborrecido, antes pelo contrário, tal é a riqueza de pormenores que a música do maestro bretão possui! Uma execução de feição surrealista, pontilhada aqui e acolá por órgãos sixties, cruzando subidas de sintetizadores vintage com falsettos castrati do próprio Bolg, traduzidos numa algarviada cheia de lalalas e nananas que brilham numa construção de estruturas musicais de fazer inveja ao mais renitente músico prog do século XXI, aproveitando para, tal como Wagner e seus discípulos, retomar várias vezes ao longo do álbum, a frase melódica do tema título, conferindo-lhe assim maior unidade temática. Dito assim, parece fácil…
Gae Bolg/Eric Roger pode ainda não ser o génio musical com que brinca no título, mas tem uma já incurável e saudável loucura associada a um talento indiscutível, e a uma vontade superior de incessantemente criar música bem-feita, pelo superior conhecimento adquirido. Com os músicos da sua confiança tem cumprido a peregrinação dos compositores independentes (como de resto pensava na Universidade ao eleger Cage, Reich, Feldman e Stockhausen como seus heróis), que é a da proliferação activa e congruente da sua obra – não pode o compositor independente, pelas premissas inerentes à sua natureza, parar de criar, de trabalhar com afinco, por via não só do seu sustento mas também do seu compromisso maior com a arte. Quando assim é, até se atingir alturas de planalto, a subida é íngreme e corre-se o risco de se dispersar – veja-se a ironia! – pelo acervo do trabalho bem conseguido.  Mas “Silver Lady – "Inclus Concentre de Génie avec des Morceaux Dedans” não é apenas mais um álbum de Gaë Bolg. Outros virão e um dia ao olhar-se para trás, ver-se-á um imenso tesouro musical.
(Texto de João Carlos Silva)

2 comentários:

  1. Estupendo texto João Silva! Aliás, à semelhança dos outros estupendos anteriores... Tão criativo na escrita como Gaë na música!

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  2. Merci! thi-ih-ih- ... o delírio da música do Mestre puxou-me pela língua. Tanta heresia levar-me-á à fogueira...Já nem me lembrava de ter assinado isto. O ÁLBUM É GENIAL!!!

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