terça-feira, 8 de maio de 2012

Café Europa apresenta: KREUZWEG OST – “Gott Mit Uns” CD, Cold Spring Recs, 2012

O projecto Kreuzweg Ost tem já mais de dez anos e não reúne apenas uma proveniência austríaca – um dos seus elementos fundadores foi o canadiano Ray “Pazuzu” Wells, educado na Áustria e mentor dos Raventhrone, por alturas de 1999, época em que os austríacos Summoning iam já no seu 4º de originais. Curiosamente, o austríaco Silenius (Michael Gregor), colaborador de Wells nos Pazuzu, e co-fundador de Kreuzweg Ost, pertencia igualmente aos lendários Abigor, aos Summoning e aos Amestigon, logo tornando inevitável uma das verdades absolutas sobre os Kreuzweg Ost – a sua ascendência vinha toda da linhagem blackmetal de um e do outro lado do Atlântico. Para além disso, o 3º elemento fundador dos Kreuzweg Ost era nada menos que Martin Schirenc, lendária figura central dos death metalers ostrogodos Pungent Stench.
Talvez por isso mesmo não seja de espantar, de igual modo, os longos espaços que separam os trabalhos na sua discografia, dada a proliferação de projetos laterais e atividade discográfica nas respectivas bandas principais. Longe vão os tempos de “Iron Avantgard”, álbum que irrompeu como um tanque enlouquecido adentro o panorama militar-industrial de 2001, com as suas marchas dançantes em plena batida marcial; tratava-se de um álbum de apresentação sem precedentes, num género que se alimentava das colagens sonoras e onde a falta de imaginação era punida com a pena capital.
Com o manancial criativo de “Iron Avantgard” os Kreuzweg Ost passavam, antes e rapidamente, de arguidos a juízes, tal foi a pujança com que marcaram presença no dealbar de um novo século europeu. Foi necessário esperar quatro anos até “Edelrost” vir render a guarda. Outro álbum construído sob a estratégia dos paralelismos sonoros correntes, em que a compaginação temática é suportada por uma ilustração áudio de referência que mexe com todas as nossas memórias cinematográficas – e aí há que dizê-lo sem reservas: após a saída de Martin Schirenc, Silenius ficou como principal mestre na arte da edição.
O cuidado no detalhe composicional estabelece-se muito para além da estratégia das camadas; ao ouvido chega-nos invariavelmente uma peça musical que se subdivide em motivos autóctones, completando mutuamente o seu sentido, ao que acrescem os pequenos apontamentos fílmicos, quase sempre oriundos de obscuros filmes independentes europeus ou mesmo de referências clássicas já quase esquecidas (basta confrontar Iron Avantgard que aposta fortemente na adaptação à tela do romance “O Nome da Rosa” de Umberto Ecco, ou mesmo os filmes históricos e respectivos documentários de Leni Riefenstahl, já para não falar de outras obras mais obscuras dos tempos do expressionismo alemão na tela).
É essa mesma a dominadora característica vocal de Kreuzweg Ost – a de não haver vocais, ou melhor, são as samples dos filmes que tecem a teia narrativa, expressiva e dramática como nunca antes se ouviu, com a citação certa para o exacto momento de tensão desenvolvido em cada compasso.
Dado o relativo anonimato que caracteriza o grupo, às vezes torna-se difícil imaginar no que este projecto se poderia transformar ao vivo, mas a complexidade estrutural dos temas iria exigir decerto uma forte componente visual, como dissemos, bem centrada nas memórias europeias do cinema e da História do século XX, um pouco como se tratasse de cruzar o militarismo kitsch e humorístico dos Laibach com a proverbial rigidez formal dos personagens criados e interpretados por Eric Von Stroheim – tudo isto repassado por memórias de coisas como “Sturmtruppen” ou a “Águia de duas cabeças” de Cocteau.
Quando, em 2012, se dá este regresso com “Gott mit uns”, praticamente sete anos após “Edelrost”, já ninguém provavelmente os esperava (o que só vem comprovar a velha máxima “nunca digas nunca”…). No entanto, os Kreuzweg Ost não voltaram como os conhecíamos – “Gott mit uns” é um disco profundamente trabalhado, grandemente dramático, por vezes quase sinfónico e sem dúvida mais teatral nos recursos de fonoteca que utiliza. O título/lema, “Gott mit uns” remete quase de imediato para os mistérios de Karl Maria Willigut, alegadamente o equivalente de Rasputine para um Heinrich Himmler sempre místico e insondável, assim como para a ideia de ser o nacional-socialismo guiado espiritualmente por valores alto-pagãos. Se o próprio mentor do movimento que abalou o mundo acreditava que não era possível trazer de volta Odin e os seus Ases, só restaria a ideia de Deus, mas não o judaico-cristão Javeh, um deus mais anterior e superior e um messias ariano, omnipresente nas tetralogias wagnerianas. No fundo, o ambiente que os Kreuzweg Ost reinterpretam tem mais a ver com o II reich, o de 1848, o da reunificação da Alemanha e da Áustria, tudo isto sugerido em complexas e enigmáticas passagens que se estendem não raramente pela marca dos nove minutos.
E aí reside outro trunfo mágico dos temas criados por Silenius e pelos colaboradores mais recentes, Oliver Stummer e Ronald Albrecht – pela esquematização repetitiva da composição inerente ao género musical que produzem, esperar-se-iam longos duelos de paciência com o ouvinte, no entanto o tempo parece não contar em “Gott mit uns”. Os temas mais curtos parecem crescer e os mais longos em nada afectam a resistência do ouvinte, em função das tramas sonoras construídas segundo a segundo, sempre intrigantes e espevitadoras da curiosidade, ou em termos práticos, a vontade do ouvinte em descobrir como vai acabar aquela história. Nada disso se conseguiria com base apenas em samples fílmicos – a riqueza melódica e até rítmica da música de Kreuzweg Ost advém do seu multifacetado passado blackmetal (por muito que isso choque os puristas) – Silenius, desde os tempos de álbuns como “Minas Morgul”, “Lugburz” e “Dol Guldur”, com os Summoning, sempre habituou quem o escutava a deambular pelo recôndito inconsciente colectivo da música ancestral europeia, imaginária ou não.
Em “Gott mit uns”, a julgar pela capa com a reprodução de uma imagem de lutas celestes entre serafins, a luta de classes primordial, retratada não longe de Gustave Doré, depreendemos também registar-se uma sensível deslocação do habitual eixo temático imperial para zonas mais herméticas, com a velha questão da queda no e do paraíso (no tema “Exitus in Paradisum”), e as subsequentes variações da pedra esmeraldina, dos Eloim e das deambulações dos guardiães, ou então dos diversos messias (uns mais negros que outros), em “Calvaria”. Em “Heiliger Gehorsam” assistimos à construção de um dos mais notáveis momentos na curta mas abrangente discografia de Kreuzweg Ost, e dando razão a alguns franco observadores, com algumas referências ao que de melhor os extintos compatriotas The Moon Lay Hidden Beneath A Cloud fizeram no início da década de 90 (de resto não é de espantar, são ambos os projectos oriundos da área de Viena).
Black Moon” é uma espécie de sonho místico explicado às crianças na hora de adormecer, indução narrativa em estado de vigília que nem sempre derrama cor-de-rosa e azul celeste na tela, e “Feuertaufe” quase a chave de ouro deste terceiro de originais de Kreuzweg Ost – marcha triunfal marcada a muito custo e sofrimento. Misteriosamente o disco encerra com “Geistige Emigration”, uma peça de dois minutos e pouco que parece traduzir literalmente o que nela se ouve, emigração espiritual, já que a física começa a não ser bem-vinda em lado nenhum, a emigração espiritual como fuga para o interior de cada um, um aceno à transmigração das almas e ao regresso à origem, afinal de contas o “Deus connosco” que intitula o álbum, Emanuel.
Silenius fez já uma longa viagem de 20 anos de música que parece ter começado ontem – na sua bagagem carrega já vários troféus que nesta arte surgem sempre como efémeros, ainda mais se os destinatários são em número mais reduzido do que aquele que passa normalmente por mainstream, o público generalista. Não será por isso que com este “Gott mit uns” vá mudar o cenário. Espera-se apenas que os seguidores fiquem ainda mais satisfeitos com o resultado de uma espera de sete anos. Ainda não se chegou a meio do ano e este é mais um volume para a significativa lista de candidatos aos melhores do ano. Sem dúvida, o melhor trabalho de Kreuzweg Ost.
(texto de João Carlos Silva)

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