terça-feira, 22 de maio de 2012

Café Europa apresenta: MARC ALMOND & MICHAEL CASHMORE “Feasting With Panthers” CD Digipack, Cherry Red Records, 2011 + “Orpheus In Exile – Songs Of Vadim Kosin” feat. The Rossia Orchestra Ensemble Cherry Red Records, 2009

Passa já um ano – há já um ano, portanto, que devemos esta vénia a MARC ALMOND! À voz e à interpretação de MARC ALMOND, a voz generosa de Eros, independentemente de géneros, que se faz soar há mais de 30 anos no consciente colectivo dos públicos do mundo. Mas há quanto tempo ALMOND deixou de se ouvir nas rádios, por cá, nos “States” e por essa Europa fora? Simples como água, a razão é lógica – o cantor deixou de ser o ícone pop que o caracterizava nos tempos dos Soft Cell ou nos anos seguintes, na sua prolífera carreira a solo, pelo menos até ao final da década de 80. E muito sinceramente, grosso modo, as grandes estações, mesmo que, inconscientemente, não passam a música de quem canta Jean Genet, Jean Cocteau, Rimbaud, Nerval…simplesmente nem sempre é fácil fazê-lo.
Feasting with panthers” foi gravado ao longo de vários anos, através do envio de arquivos de música por e-mail e correio, nunca os artistas gravando juntos uma vez sequer em estúdio: MICHAEL CASHMORE trabalhando em casa, em Londres, para compor a música, tocando todos os instrumentos e adicionando vocais de MARC, dos arquivos gravados em Moscovo. O resultado é uma gloriosa união, tanto em voz com em música, complementando os textos. O projecto começou depois de David Tibet dos Current 93 ter dado a MARC ALMOND um livro de poemas pelo poeta alemão do Báltico, Conde Stanislaus Eric de Stenbock, o qual já havia sido publicado por Tibet no seu selo Durtro. Marc foi imediatamente atraído pela dark-erotica patente nos escritos do Conde.
MARC ALMOND - a voz que fez a ponte entre Marc Bolan, seu ídolo da adolescência, e o binómio Scott Walker / Jacques Brel, na lógica poética de MARC, dois vultos que se completam na arte maior de cantar. Mas esses anos de profissão de fé foram ficando para trás. MARC ALMOND: no início do século XXI, mais atribulações numa já longa carreira, aparentemente proporcionais a tantas glórias, de onde se destacam a mudança para Moscovo, as andanças entre Londres e Barcelona, o terrível desastre de moto no coração da City em 2004, ali, mesmo às portas de St Paul, que lhe valeu pelo menos dois anos de recuperação das mazelas que mais marcas poderiam deixar – de uma assentada só, um coma de meses, reconstrução craniofacial, surdez permanente de um dos ouvidos e longa fisioterapia motora. Mesmo assim, resistindo, e gravando.
Chegado à segunda década do novo século, e depois de discos como Stranger Things (2001), Heart on Snow, de 2003, quatro anos depois seguido de Stardom Road, e também por Orpheus in Exile – the  Songs of Vadim Kozin (2009) e ainda por Varieté, do ano seguinte, MARC ALMOND consolida não o seu nome mas a sua grandeza de grande cantor para a posteridade da memória pública, reunindo de novo em estúdio com o guitarrista MICHAEL CASHMORE, habitual presença nos discos dos C93 e, com a ajuda do poeta Jeremy Reed, produzindo o álbum Feasting with Panthers, disco a que damos hoje principal destaque no Café Europa, já que a reboque vem também a recordação do álbum de 2009, “Orpheus in Exile, The Songs of Vadim Kozin”. É de resto extremamente difícil escolher entre os dois. Pela proximidade optámos por “Feasting with Panthers”.
Que não valha a pena o exercício da dúvida – Feasting with Panthers é todo ele uma ode decadentista feita antologia de celestiais e iluminados poetas laureados; um pouco à imagem de Diamanda Galás, não é de todo difícil a MARC ALMOND interpretar em apoteose estilística nomes como Rimbaud, Jean Genet e o patrono Jean Cocteau, Paul Verlaine, o conde Erik de Stenbrock ou Gérard de Nerval. Em Feasting With Panthers só espanta ainda mais o prazer auditivo – já não mais a sensação de se estar a meio dum “rendez vous blind date” com uma voz transgressiva, um efeito reminiscente das primeiras vezes que se escutaram as de Lou Reed, Iggy ou Bowie, mas a confirmação de um mestre cantor no topo das suas capacidades, já bem perto dos 60 anos mas soando ter metade!
O fabuloso ambiente gráfico de cartaz de grande cabaret da capa digipack, pode ser a tempos enganador – como noutros seus contemporâneos como Costello e Momus, trata-se de uma actualização do cabaret e não um revivalismo, poemas 'Decadentes' sim, de amor frustrado, romance malfadado, decadência e morte, com melodias tecidas com a iluminação de um artesão de reis e imperadores, traduzindo poeticamente vertigens homoeróticas, ópios de sedução e queda, esculpidos nos sons da direcção musical de MICHAEL CASHMORE, que assombra, orgulhosamente melancólica, no que dá aos versos em matéria de sentimento, anseio constante pela beleza da inocência perdida e da juventude.
É também nesta singularidade que está o brilho de Feasting With Panthers – elevar bem alto o estandarte de cem anos de decadentismo não lhe causou mossas datadas, e é na sua esfera impressionista, um disco estranhamente jovem, um ato de magia.
Extravasando os limites da parcimónia crítica, “Magnífico” será o mínimo denominador comum para a totalidade dos temas; o efeito berlinesco anos trinta é invocado de longe, sem grandes compromissos com o passado, numa nova música de salão, agora irradiada para o ciberespaço. Este é um trabalho extremamente bem estruturado como desinibido perante as restrições e exigências do mercado. MICHAEL CASHMORE estrutura-o num estilo barroco e clássico, sinfónico, ambiental e pop, tornando viável o casamento impossível entre as sonoridades antes da guerra e as que sucederam ao baby boom. Corroborando a magia do tempo, neste álbum, poderia ter sido feito em 1929, em 69 ou em 2011.
Não é ingénua a alusão inicial de a voz de MARC ALMOND funcionar aqui como num terreno próximo dos oratórios de Haendel – se calhar uma analogia que já vem de longe. É constante e está implícita na atitude litúrgica e libertária com que canta os anjos magnificamente caídos dos sujeitos poéticos que interpreta. Só isto bastava para fazer do duo ALMOND / CASHMORE uma espécie de atletas da estética numa época de pleno triunfo. É um intrigante conceito que sopra uma nova vida em poemas clássicos como “The Sleeper In The Valley”, de Arthur Rimbaud, “El Desdichado” ou em “The Man Condemned To Death” de Jean Genet, assim como na interpretação das novas composições líricas de Jeremy Reed, tais como as impressionantes “Boy Caesar” e “Patron Saint of Lipstick”.
Mesmo assim, a marca MARC ALMOND não se desvanece assim tão facilmente, apesar da forte colaboração da dupla CASHMORE / Reed; refreando alguma da sua tendência teatral de arrebatar de imediato o ouvinte pelas golas da sensibilidade, a voz ALMOND permanece no foco das luzes da ribalta cabaret, num registo maduro e suave, alternando entre uma narração poética e um canto de arauto que sucumbe por vezes ele próprio aos encantos passionais e aos abismos existenciais. Tudo isto num só disco é para o ouvinte tarefa de físico a quebrar o núcleo do átomo.
Transitando para a recuperação do álbum anterior a “Feasting With Panthers” e a “Varieté”, “Orpheus in Exile” sugere estranhamente uma antecipação estilística do que vimos, continuado no nosso principal destaque desta noite no Café Europa.
Importa primeiro situarmo-nos em relação a quem foi Vadim Kozin, o tenor russo nascido em 1903 em S. Petersburgo, de ascendência gitana. Kozin iniciou a sua carreira nos anos 20, de imediato conquistando significativo sucesso nesses anos fulcrais da Revolução Russa. Na década de 30 foi para Moscovo onde ampliou a sua fama, com a ajuda do não menos talentoso David Ashkenazi. Nesses quase vinte anos de atividade, nenhum dos seus atributos pessoais – o facto de ser cigano e alegadamente homossexual – lhe trouxe qualquer problema com as cúpulas soviéticas. Serviu na segunda guerra, na brigada de artistas que entretinha as tropas da frente do exército Vermelho. No entanto, um dia, pouco antes do aniversário de Stalin, Beria, alma negra do KGB, questionou-o sobre as suas canções nunca citarem o nome do “Homem de aço”; a resposta de Vadim Kozin foi irónica – as canções sobre Stalin não se enquadravam bem nas vozes de tenor. Logo de seguida, Kozin foi preso e condenado a cinco anos de cadeia e trabalhos, numa gigantesca campanha repressiva de purga entre os artistas russos, tendo sido enviado para Magadan – rumores entretanto apontavam como motivo a lendária homofobia soviética.
No início dos anos 50 foi libertado mas a sua carreira nunca foi reabilitada pelo aparelho do Politburo, tendo permanecido em Magadan até morrer.
MARC ALMOND, consegue em “Orpheus in Exile”, com a ajuda de Alexei Fedorov, um digno tributo à memória do tenor, contando a sua história num conto circular que começa em “Boulevards of Magadan” com os seus arranjos mágicos que serviram de base musical a inúmeros anúncios televisivos de marcas burguesas, até “Letter from Magadan” , onde nem o sonho nem a resistência de Kozin se desvaneceram.
Musicalmente, “Orpheus in Exile” (referência directa à trilogia cinematográfica de Jean Cocteau) resume bem o estilo da canção romântica, mais teatro de variedades do que cabaret, mas invariavelmente conotada com a profunda dimensão poética de Kozin. É neste ponto que se estabelece o contacto de antecipação entre “Orpheus in Exile” e “Feasting With Panthers”, granjeando na discografia de MARC ALMOND o título de iniciador de uma trilogia que se completa em “Varieté”, esta noite ausente da nossa esplanada.

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