quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Cafe Europa Apresenta: IANVA "La Mano Di Gloria"



IANVA
"La Mano Di Gloria" Digibook CD 2012, Alpha South

O tempo de uma afirmação de carreira é cada vez mais incerto, oiça-se “imprevisível” – regra geral, no chamado mainstream, ou em qualquer círculo mais tangente ao marketing corporativo, leva apenas os dias de empurrar um vídeo absurdo para um qualquer franchising televisivo alegadamente musical, empacotar um perfil, umas digressões de frango de aviário e um ridículo culto de imagem fútil e superficial, juntam-se uns pozinhos de sensacionalismo pretensamente jornalístico, e está encontrada a próxima coisa grande que durará exatamente o tempo de que os agentes predadores acima enunciados levarão até à saciedade. Depois apaga-se o lume, desliga-se o gás, corta-se a luz e cai-se no esquecimento.
Levou de facto algum tempo até os músicos e escritores de canções entenderem realmente o que havia a aproveitar do que a agitação punk trouxe de bom para a música popular – levou-se pelo menos mais de trinta anos a perceber que tudo o que é digno se constrói lentamente e sem grandes saltos para estrelatos cintilantes. Assim aconteceu na altura, com ou sem Kim Fowley, ou Malcolm McLaren, com ou sem Tony Wilson. Os artistas não deveriam depender de usurários dignos de figurarem nos autos de Gil Vicente, nem deveriam esquecer-se de que as suas figuras ainda existem – de resto nas adaptações para teatro escolar dos mesmos autos, a alegada consciência politicamente correcta já está a substituir as figuras do judeu e do usurário pela de um muçulmano bombista, o que é no mínimo um sintoma inquietante. Ao que se chegou!

Serve toda esta argumentação para sublinhar a importância que o fenómeno DIY alcançou na Europa, talvez mais que na América, ao ponto de, a partir do início do novo século, se instaurar na maior parte dos países europeus uma consciência autocrática entre as células artísticas criativas com alguma coisa para mostrar e dizer. Criaram-se editoras que são mais manifestos de inconformidade com o zeitgeist da União Europeia que qualquer outra coisa, mostrando ao mundo, parcialmente atento, interpretações e representações do tabuleiro de xadrez mesquinho em que estamos metidos.
A eterna Itália foi sem dúvida um dos pontos quentes desta revolução e de Génova, a industriosa e portuária antiga república, coração da Ligúria, o grupo musical IANVA, liderado pela figura misteriosa e seca de Mercy, têm vindo a marcar território de modo inabalável e determinado. Desde os meados da década passada, dois álbuns absolutamente envolventes, “Disobbedisco” e “L’Italia : ulttimo atto”, pareceram colocá-los num panorama de grande neofolk orquestral, com nítidas influências paralelas do music-hall italiano dos anos 50 e 60, mas seria deveras limitador considera-los com falta de originalidade. Porque se pode pegar em citações estilísticas e desenvolvê-las ao ponto de as tornar suas – se isso já estava patente nos dois álbuns anteriores, neste último “La Mano di Gloria”, os IANVA entram num novo ciclo apoteótico. Mercy e todos os seus colegas não são aprendizes nem novatos – de proveniências várias ligadas anteriormente a géneros ditos maiores como o jazz, o progressivo e o folk, esta agremiação de grandes músicos profissionais decidiu um dia reunir-se à volta de um conceito mais abrangente e unitário e fazer da sua música um retrato vivo do espírito italiano, assim como do seu periclitante estatuto na conjuntura comunitária europeia.
Ávidos conhecedores da história, retrataram o futurismo da revolução camisa negra, os seus perigos e dissidências em “Disobbedisco”, depois a memória revolucionária vermelha dos anos 70 em “L’Italia Ultimmo Atto”, como se para fazer calar as habituais suspeitas ideológicas vindas nunca se sabe bem de onde, e finalmente apontam para o futuro da União Europeia em “La Mano di Gloria”. Mercy é um hábil escritor, um novelista a sério, e antecipação como género literário não é para qualquer um…
O termo antecipação aplica-se aqui porque a narrativa passa-se em 2029, numa Europa já absolutamente totalitária, mas por um capitalismo distópico, onde literalmente já não é possível viver. Qualquer relação gradual com o presente é totalmente propositada. Se o penúltimo disco era uma descida aos infernos do caos sociopolítico do passado vermelho ao cinzento presente, é chegada a hora de permanecer de novo de pé e sublevar-se contra o status quo, agora implicitamente centralizado num certo país a norte. Esse protesto organizado, essa luta secreta é narrada em “La Mano di Gloria” de uma perspectiva emocional, uma reacção que simultaneamente popular e aristocrática, liderada por uma minoria atenta que tem como único fito a libertação dos indivíduos cidadãos europeus do jugo económico-financeiro que à sua imagem condicionou a verdade, a vida quotidiana e até o ar que respiramos. Em certos momentos e de uma forma estranha e indirecta, “La Mano di Gloria” traz-nos à memória o álbum “Megalopolis” do franco-líbio Herbert Pagani, lançado em 1972, embora esse tivesse uma carga irónica muito mais forte. Os IANVA e a sua elite justa e libertadora não gastam tempo com jocosos jogos de palavras e revolucionariamente vão directos ao assunto.
Para encontrar a atmosfera certa seria necessário abandonar o rigor histórico e entrar nos domínios da ficção – mas como nos provam algumas imagens mediatizadas nos dias que correm, a realidade consegue ser mais atroz e alienígena que a ficção. O terror imposto no futuro por uma oligarquia iluminada, tema que fazia já parte da novela homónima escrita também pelo punho de Mercy, motiva então essa guerrilha, cerebral e física, levada a cabo por um punhado de gente brava que algures na Itália obscura do futuro, oriunda de diferentes contextos ideológicos e culturais mas partilhando o mesmo destino, enfrentam o poder instituído com armas de pura sublevação estética.
Não se pense que estando em presença de mais um álbum conceptual se perde pelo facto de não haver unidade nas canções – tal como isso não aconteceu antes, não acontecerá aqui, aliás, como não tem acontecido com outros nomes importantes e dominadores da cena neo-folk orquestral europeia, bastando pensar no caso dos luxemburgueses ROME. À parte essa dúvida, eleva-se o fulcro patriótico libertário que é o elemento precioso da demanda – a eterna Itália, com as suas paisagens e as suas artes, dois tesouros que permanecem monumentais entre o estado de desolação social e o vazio imperial da burocracia do poder, dividida algures entre Bruxelas e Berlim.
Por assim dizer, e pelo grafismo pétreo da capa de “La Mano di Gloria”, o álbum mais parece um fresco do estado atual e das complicações futuras que enredarão inevitavelmente os países europeus menos ligados à oligarquia bancária que já agora manda nos nossos destinos – e não é por pintar um quadro gradualmente mais negro que os IANVA acusam qualquer nota de derrotismo ou sinal de cansaço. Até mesmo na frente musical este novo disco do colectivo genovês de nove elementos, é imponente, onde pontificam, como nunca, os metais de sopro, os violinos, a voz de Mercy e de Stefani D’Alterio, e uma secção rítmica de verdadeira orquestra, que salvaguardam o outro lado marcial da música de IANVA, nunca temendo aproximar-se do arcano melodrama italiano oitocentista, até como prova identitária cultural. Como se sabe, a mão que puxa na sombra os cordelinhos do jogo que vivemos pode, aparentemente, incentivar para fins turísticos tal dimensão, mas na prática será essa mesma prova um perigoso acto contra a globalização que os nossos políticos nos convidam a abraçar de corpo e alma.
A principal nota de inovação neste novo trabalho dos IANVA, reside no facto de toda a trama se passar no futuro, obrigando o ouvinte a um pequeno exercício e leitura, já que não dominará os referentes históricos como nos discos anteriores, o que na prática constitui outro acto de subversão ao obrigar o cidadão europeu minimamente instruído a tomar contacto escrito com a língua de Itália, não de forma compulsiva, mecânica ou laboral, tanto ao gosto dos compadres germânicos, mas de um modo interessado e afetivo, indutor da solidariedade e da empatia com a causa proclamada por estas mãos da glória.
Se retomássemos sinais do passado recente no círculo discográfico em que nos movemos, poderíamos encontrar um paralelo proporcionalmente indireto em “Flowers From Exile” dos ROME – só que esse localizado num passado já conhecido, vivido e acima de tudo já vencido, um dos pesadelos que contribuiu também para a criação do sonho europeu, a horrível guerra civil espanhola e os seus heroicos combatentes republicanos, os quais, mesmo mortos e derrotados, ficaram vitoriosos para a posteridade histórica da libertação dos homens; em “La Mano di Gloria”, essa vitória ainda está, de novo e por mais incrível que pareça, longe demais!

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