terça-feira, 20 de novembro de 2012

Café Europa Apresenta: “Pere Lachaise”, split w: Horologium – Foundation Hope – Project Winter – Artefactum, (Steinklang, 2006)

O selo austríaco Steinklang, eficaz promotor da simbiose do radicalismo industrial com a mais depurada forma de neo/dark folk, desenvolveu engenhosamente uma política paralela de edições antológicas, para melhor dar a conhecer os empenhados nomes de catálogo. À parte os álbuns uninominais, foram sendo lançados volumes de compilações da série ST Disco Industries/Distribution, e outras edições split que regra geral obedecem a temáticas. Em 2006, dos últimos anos que registaram procura significativa nesse segmento de mercado, a junção dos polacos HOROLOGIUM aos compatriotas ARTEFACTUM, com a participação dos holandeses FOUNDATION HOPE e ainda dos PROJECT WINTER, todos em “Pere Lachaise”, oito temas ambientais e rituais, à volta das majestosas fotografias de Fabrice Brillard sobre o gigantesco e já então bicentenário cemitério da zona leste de Paris, com 43 hectares, onde descansam os restos mais ilustres de pessoas que obtiveram estatutos de deuses vivos, entre milhares de consumados mortais.
Para quem uma necrópole esmague o coração, não andará longe o efeito conseguido em cada par de temas com que cada projecto contribuiu. É a desolação sublime que se entranha no ritual ambiente e na sua aparente ataraxia estática, conferindo a quase todos os temas esse anzol hipnótico que, acrescido da intensa beleza lúgubre das fotos de Brillard, torna esta experiência no mínimo sempre interessante. A visita ao Pere Lachaise é algo inesquecível e, claro está, acaba quase sempre por cruzar caminhos com os peregrinos ao pequeno túmulo de Jim Morrison, cujo busto toscamente esculpido em pedra, num quase comovente gesto de um admirador, acabou por ser roubado, como de resto o vandalismo dos fãs deixava adivinhar há muito, a julgar pela forma como tratavam as sepulturas, jazigos e mausoléus de desconhecidos ou até mesmo outras pessoas célebres ou mais meritórias que o arruaceiro vocalista e poeta dos The Doors. Com efeito, não é só Morisson que estará alegadamente sepultado em Pere Lachaise. Oscar Wilde, Molière, Honoré de Balzac, Jean de la Fontaine e Marcel Proust chegavam para honrar o talhão dos escritores (embora o cemitério obviamente não siga esta divisão administrativa); depois há pintores como Delacroix ou filósofos como Auguste Comte e historiadores como Michelet, actores como Sarah Bernhardt, Yves Montand, Annie Girardot e Maria Schneider, mas será na secção de músicos e cantores que o elenco fúnebre é ainda mais impressionante, com Chopin, Rossini, Maria Callas, Edith Piaf e o já referido Jim Morrison, entre muitos outros dignos de menção honrosa nesse imenso domínio de paz e glória eternas. Mesmo os que até agora se contentaram com a informação wikipédica e aquela que está contida num flash final do popular e feirante filme de Oliver Stone sobre os Doors, têm, online, uma interessante visita virtual, para realizarem bem a beleza do local.
Sentimento esse que esta súbita agremiação de músicos polacos e holandeses bem conseguiu neste split de 2006 na Steinklang Industries. Os HOROLOGIUM não só conseguem estar iguais a si mesmos, mas vão mesmo além desse registo militarista e áspero a que nos habituaram, apostando mais no seu lado melódico, com um encaixe sensato de teclados melódicos, estáticos mas envolventes e motivadores da senda que se está prestes a encetar. FOUNDATION HOPE surge com sons fantasmagóricos de conversas de intercomunicadores e sintetizadores graves, com uma batida esmagadora e pesarosa, que logo desenvolve largas passagens de teclado em registo de violoncelo e contrabaixo, estendendo-se por largos minutos. É esta habilidade de que falávamos acima, patente em quase todos os grupos de ambiente ritual, que torna a sua produção muito mais do que simples papel de parede obscuro para qualquer que seja a actividade mental humana, adensando o mistério desta visita ao imponente cemitério parisiense. A outra boa surpresa vem do PROJECT WINTER, bem mais alinhado com a matriz noisy de unidades mais antigas como os suecos Deutch Nepal e Archon Satani (em suma o espírito Cold Meat) ou de outras mais recentes como os polacos Atum. Essa linhagem está patente na sequência dos seus dois longos temas que, juntos, ultrapassam majestosamente um quarto de hora, fechando com tema vocalizado à maneira do final da década de 80, por uma fria voz feminina, marcado de novo por uma batida espaçada e opressiva, abrindo caminho para a outra vedeta do split, os polacos ARTEFACTUM, que encerram a visita, de volta aos portões de pedra da entrada de Pere Lachaise. Dizer que estes encerram o álbum da melhor maneira, será gratuito, já que os grupos e projectos anteriores para isso contribuíram, mas é indubitável a eficácia com que os ARTEFACTUM, também em cerca de 15 minutos, tecem a banda sonora para o crepúsculo em Pere Lachaise, minutos depois de os portões terem encerrado, e para o que no imaginário de cada um se desenvolverá, sensação induzida pela tridimensionalidade dos ecos, ruídos e ambientes sonoros indecifráveis que lentamente se esfumam dos speakers.
Seis anos passaram e, entretanto, muita coisa aconteceu através do selo Steinklang. Se calhar, até motivo de justificação para o esquecimento a que foi votado este split álbum; no entanto, aqui uma vez mais se produziu o efeito desejado de fazer da música ritual ambiente um dado para transmissão futura, assegurando o seu estatuto de música perene, e confirmando que este Pere Lachaise fora de factum um bom disco e que a sua aura espectral por detrás da focagem escura não se desvaneceu. De certo modo, a sua passagem pelo Café Europa, reúne as condições para ser considerada até um pouco de reconciliação com este particular domínio da História da Europa, em que os seus mais dignos representantes artísticos há muito já partidos, são indiretamente homenageados, no split a oito mãos Pere Lachaise, pelos HOROLOGIUM, FOUNDATION HOPE, PROJECT WINTER e ARTEFACTUM.

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