segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Café Europa apresenta: X-TG "Desertshore / The Final Report" part.II


X-TG "The Final Report"
Industrial Records, 2012
Na passada semana tivemos aqui a análise dos valores e inconsistências dos temas presentes em “Desertshore by X-TG”, no qual os dois elementos sobreviventes Chris Carter e Cosey Fanni Tutti, recuperavam as sessões gravadas até 2010, com o falecido Peter Christopherson, para os originais de Nico incluídos no seu velho clássico de 1970 com o mesmo título. Se, para esse verdadeiro tributo de amor à memória de Christopherson, contaram com a colaboração de gente famosa como Marc Almond,  Antony ou Blixa Bargeld, no disco que completa a supostamente derradeira edição de estúdio das pessoas em tempos ligadas aos Throbbing Gristle, “The Final Report”, Chris e  Cosey repõem parte das gravações originais antes da morte de ‘Sleazy’ assim como alguns acrescentos realizados já postumamente.                                                                                          
Vimos que, na primeira parte desta edição de luxo de Novembro passado, se verificava algum equilíbrio entre momentos altos e baixos, embora o seu alinhamento no álbum fizesse temer o pior, quiçá uma obra falhada, o que felizmente não veio a acontecer. Ao fim de uma audição algo preocupada, chegou-se à conclusão de que se salvava não só alma do disco, como o cômputo geral das suas qualidades, a começar por uma produção e mistura irrepreensíveis. “Desertshore by X-TG” abria assim, suavemente, o caminho para o relatório final da lenda T.G.
A sonoridade adaptada de alguns dos momentos de “Desertshore” apontava, curiosamente, para a repescagem de sons de há mais de trinta anos, concretamente semelhantes aos que figuravam em “20 Jazz Funk Greats” e “Heathen Earth”. É com esse fio condutor que se restabelece o contacto em “The Final Report”.
Começando com “Stasis”, os X-TG constroem um tema de quase sete minutos que define as intenções de uma obra que pretende encerrar quase solenemente uma carreira de 37 anos. De um resíduo ambiental crescente, nasce uma rítmica marcha tribal industrial, polvilhada com drones reverberados que motivam resposta automática da nossa memória em relação a coisas como Deutsch Nepal, com a mesma gramática abstrata e a mesma tensão hipnótica presente em álbuns dos supra citados suecos como “Benevolence” e “Erosion”, não fosse a velha trompete de Cosey Fanni Tutti a marcar com propriedade a tradicional griffe dos Throbbing Gristle. Para introdução não se poderia pedir melhor a um colectivo reduzido de veteranos, e na sequência, “E.H.S.”, resulta numa abordagem ainda mais fiel ao dark-ambient industrial de antanho, acrescido de vocoders imperceptíveis, combinados com uma guitarra distorcida que se lamenta em avisos sucessivos, alertas subliminares que atestam a patente de que os T.G. sempre usaram os instrumentos ditos normais de uma forma subversiva / subversora.
 “Breach” e “Um Dum Dom” parecem enquadrar-se um pouco mais em território partilhado com as entidades que evoluíram dos velhos T.G., quer sejam os Coil ou Chris and Cosey, embora com predomínio da estética de Christopherson, por exemplo com os Threshold Houseboys Choir/Soisong. Há uma melódica que vai planando entre baixos e ritmos obsessivos que culminam num tic-tac de relógio de sala que faz a ponte com “Um Dum Dom”, um chachachá à maneira dos Cabaret Voltaire, recheado com um registo de teclas entre o vibrafone e o gamelan, piscadela de olho ao estatuto de cidadão tailandês entretanto granjeado por ‘Sleazy’. Digamos que este divertido intermezzo marca a passagem para uma nova dimensão deste derradeiro relatório X-TG.
“Trope” é uma peça distópica e angustiante, latejante como uma enxaqueca de lucidez no início de uma grande jornada. Assente num maquinal loop industrial, cheio de rangeres de engrenagens mal lubrificadas, ressurge o registo vocal quase kraftwerkiano, ainda assim pouco presente, ao contrário dos tempos em que Genesis P. Orridge empregava a sua glossolalia lisérgica. Como constataremos adiante, será mesmo que com este tema “Trope” que o álbum “The Final Report” se desdobra, como se de outro álbum mutante nascesse, como um rebento excrescente pouco bonito de se ver mas mesmo assim fascinante. A atmosfera opressora parece de novo ganhar forma como em 77, como no iniciático “2nd Annual Report”.  Se tentássemos estabelecer paralelos com os temas mais duros dos registos recentes de 2007 e 2009, “Part 2 The Endless Knot” e “3rd Mind Movements”, “Trope”, mesmo assim, conseguiriam batê-los aos pontos, em matéria de retro-actividade. Aliás, será este um dos pontos mais enigmáticos na análise do trabalho destes músicos, no momento de dizer “Adeus” – os iconoclastas proscritos que há três décadas e meia foram alvo de uma guerra santa proclamada pelos conservadores, que os consideraram destruidores da Civilização, fazem hoje música que está deveras nos limites mas é aceite consensual e condignamente como vanguardista, como válida no actual contexto da Humanidade. Quer isto dizer que já poucos ficarão chocados com as suas arrojadas visões sonoras sobre presente e futuro da sociedade, quer isto dizer que já nos habituámos todos ao cinzento de “1984” e ao cheiro nauseabundo que emana das sarjetas da sociedade liberal de controlo em que nos movemos. Quer isto também dizer que o presente foi ao encontro do passado e das palavras de Genesis P. Orridge, escritas no panfleto que anunciava a primeira actuação do grupo, em Julho de 1976 , e que passamos a ler – “(…) Imagine-se andar por ruas enevoadas, caóticas. Pós-civilização. Cães vadios comendo lixo, vento a uivar (…) Estamos em 1984. A única realidade é a espera. Mortal. É a sociedade da fábrica da morte, hipnótica, mecânica, esmagadora. Música da desesperança. Banda sonora para cobrir o holocausto. Tantra do subliminal, queda da palavra, queda das imagens. A tribo das mutações, bandos de rua lobotomizados na fábrica da morte. Sem fim. Crianças da Televisão tentam preparar-se, meditando no cessar da existência. (…) Chegou a Música para 1984.”. Ora, em 2013, quem não reconhecer nisto um pouco da sua realidade circundante, é porque de facto cessou de existir.
E, doravante, no alinhamento de “The Final Report”, é constante o sofisticado terror sónico – “What He Said” e “In Accord” asseguram essa qualidade única de construir narrativas abstratas, que aparentam fazer perfeito sentido, mas cujo significado não conseguimos esclarecer, embora esta última até tenha uma heartbeat quase funky, e feche com uma espécie de solilóquio de pequeno extraterrestre cinzento!
Os momentos finais do relatório final aproximam-se – a sala ainda não está vazia, mas já houve gente, menos dada a estas coisas do coração, que os abandonou … com um olhar indiferente perante todas as suas acrobacias e proezas, perante a sua inegável meia-idade, avançada e resistente, um pouco heroica, até. Cada um dos elementos do casal Carter Tutti já ultrapassou os 60 anos de idade, e as novas gerações nunca se dignam entender o significado do verbo envelhecer- ainda não está na sua programação biopsicológica. Por seu turno, os X-TG sabem-no bem, ou não fossem eles co-autores da tetralogia que medeia entre “2nd Annual Report” e “Heathen Earth”, uma pequena-grande revolução de traços escatológicos contra a sociedade de controlo, regra geral dirigida pelos que já ganharam a dita experiência de vida. A sala ainda não está vazia – com eles ainda estão os que sempre neles viram forças de orientação e criatividade únicas e com eles vão ficar até ao fim. Os últimos temas sucedem-se com a mesma dinâmica avassaladora e qualidade impecável – “Gordian Knot” e “Emerge to Space Jazz” (talvez com ecos da velada profissão de fé que ‘Sleazy’ sempre prestou a Sun Ra), dois momentos que ainda elevam mais alta a fasquia da qualidade deste último trabalho dos Throbbing Gristle sem Genesis P. Orridge e sem a presença física, à altura do seu lançamento, de Peter Christopherson, embora presente na maior parte das gravações. Incautos, os que vão ficando, ignoram que serão eles a quem a máquina irá ser desligada, não à banda. Serão eles mesmos, caso não souberem libertar-se duma estética, ela própria libertária, que lhes revelou a liberdade dos sons há tantos anos atrás. Último tema, último minuto e meio – parece Ringo a falar dos últimos takes de “Abbey Road” - e regressa o mesmo latejar de subgraves, o mesmo raspar de chapas e fios elétricos descarnados, a mesma visão de pacífico estertor que Kubrick concebeu para a morte de Hal, o computador central da nave de 2001 Odisseia no Espaço. Os sons digitais morrem hipoteticamente no espaço da nossa sala, que já não é a sala onde ainda há pouco os X-TG faziam o simulacro de um grande incêndio final. Parece finalmente haver paz. O silêncio sem os Throbbing Gristle é igual a qualquer outro silêncio já ouvido. Será isso significativo? Terá a missão terminado? Quem os lembrará?
Há 35 anos numa pequena cidade, um adolescente na secção de revistas de uma grande distribuidora livreira, hesitava folhear entre duas revistas – uma, inglesa de título em espanhol, sobre, digamos, atividades naturistas dentro de portas, com modelos de todo o mundo, entre os quais de Inglaterra, e a outra uma conceituada revista europeia sobre música jovem, herdeira do espírito libertário do maio parisiense. Optando pela segunda, o teenager descobriria para seu espanto e regalo, uma reportagem dissecadora, escrita pelo distinto jornalista francês Yves Adrien, sobre a nascente música industrial britânica – de Sheffield, uns tais Cabaret Voltaire e Human League lideravam as sondagens; de Londres, um estranho grupo de outsiders era alvo da mais intensa e perturbante descrição jornalística, como se da mais importante revelação se tratasse, para o futuro da música numa sociedade mecanizada. Ignorava o jovem leitor que na outra publicação poderia bem encontrar alguma referência a alguns dos elementos desse grupo. Davam pelo nome de Throbbing Gristle, expressão de rua da região de Yorkshire, para um fenómeno natural na anatomia humana, ligado à circulação sanguínea. Fim do último relatório anual. 
Texto: JCS
Fotos: AF

4 comentários:

  1. Ângelo, esta fotografia É HISTÒRICA - pode bem ser uma das últimas, senão mesmo a ÙLTIMA fotografia de SLEAZY vivo, ao vivo em palco. O seu gesto é também arrepiantemente significativo. Sabe se depois deste concerto do Porto houve mais até à data da morte de Peter? Continuação do excelente trabalho.

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  2. De facto creio ter sido este o último concerto de Sleazy e, por conseguinte, dos X-TG. Histórica já seria a passagem deles pelo Porto, assim fica definitavamente marcada na vida dele(s).
    Abraço e obrigado pelo comentario.

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  3. ,,, com efeito... daqui fala o autor do texto; com semelhante gesto em palco, com tanta grandeza de iluminação interior, e tendo ele dias depois ter feito um post no seu blog, afirmando a sua tranquilidade e certeza face à continuidade da vida após a morte física, é arrepiante que vejamos esta foto como um sinal de predestinação. Aqui Christopherson já não era bem "sleazy"... acredite-se ou não, a morte dos dois Coil neste início de século tramado é MUITO MAIS que uma estatística. Daqui a muitos anos ainda estaremos relembrando os dois.

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  4. Aproveito para, meio ano após este texto, acrescentar que o disco de despedida dos TG, e muito especialmente de Peter Christopherson,é um perfeito grower. Graduo em valor mais alto os temas do 1º disco aos quais atribuí traços menos satisfatórios. O tempo acabou por provar que os TG nunca foram só GPO, e que mesmo se ele tivesse estado presente, provavelmente condicionaria visivelmente o lp, pela sua aura xamânica magnética que costuma centrar atenções. Pode ser um paradoxo estar a dizer isto, mas tenho a certeza. Digamos a sua despedida aconteceu mais cedo, nomeadamente nos dois álbuns anteriores, feitos nestes escassos 5 anos depois do inimaginável regresso à actividade. É mesmo um dos álbuns do século até ao momento. Emboa hora o Café Europa se lembrou de lhe dar um duplo destaque, o que só o torna um momento musical deveras histórico. Não o deixem de ouvir - o programa como a Desert Shore/ The final report by X-TG.

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