terça-feira, 4 de junho de 2013

Café Europa Apresenta: DEATH IN JUNE ‎– "The Snow Bunker Tapes" (New European Recordings), 2013

Numa célebre entrevista feita há mais de dez anos com os Coil, sem a presença de Jhonn Balance, a qual circula no canal Youtube, o jornalista amador perguntava ao génio de Peter Christopherson se os grupos cuja imagem sempre debitou ambiguidade em catarata sobre a opinião pública, deveriam ou não explicar o porquê de certas opções. Sleazy, jorrando inteligência no olhar e esquivando-se meritoriamente à pergunta, talvez porque já estivesse farto de tanta previsibilidade, respondia que sim, que deveriam, desde que soubessem de antemão que o que traziam ao escrutínio da curiosidade pública provocaria uma reação antagónica e condenatória. É claro que sabemos todos do que se trata. Não que as assumidas orientações individuais de muitos dos músicos desta geração de bandas inglesas alguma vez tivesse interferido no geralmente tolerante quadrante opinativo dos seletivos públicos a que se dirigem – a relação entre Christopherson e Balance nunca afectou os devotos hétero dos Coil, assim como a trivialidade com que Douglas Pearce sempre falou da sua “gayness” fez mais pela causa da compreensão do que qualquer campanha. No entanto, a linha inflexível deste último, em se manter uma espécie de outsider disciplinado e incontactável, granjeou-lhe o estatuto de figura difícil, cheia de asperezas e espinhos, quando se trata de intromissões na sua vida profissional.
Se defendeu-se muito bem no caso da World Serpent ou até mesmo nas audições do Ministério Público alemão, a propósito da natureza e expressão visível da sua obra artística, em tudo o que esta conota de simbolismo adverso ao que os alemães hoje acreditam, o que Douglas Pearce invariavelmente transparece, no relacionamento de trabalho com os outros, é um perfeccionismo a toda a prova, um nível de exigência espartano, quer sobre si, quer sobre os outros, daí a tal “malaise” que diz sentir cada vez que entra em estúdio para gravar uma nova obra de DEATH IN JUNE.    
Para todos os efeitos, com o novo século, Pearce fez uma nova aposta no seu futuro. Vencida a batalha da Serpente Mundial, justiça feita junto dos que o impediram de progredir na carreira, sem ajudas sindicais, sem nada, era necessário redefinir prioridades que agradassem a ambos os lados.
Aos fãs interessava sobretudo “recuperar parte do poder de compra” que a distribuição abúlica da World Serpent tinha feito pura e simplesmente embotar, interessava primeiramente saciar um apetite de mais de uma década, em que os discos de DEATH IN JUNE eram falados mas não apareciam em lado nenhum. Em dez anos tal ausência foi colmatada; para alguns mais puristas, dir-se-á mesmo, em demasia. E é esse sentimento paradoxal que nos traz hoje ao destaque central do Café Europa – “The Snow Bunker Tapes”, o duplo dez polegadas vinil dos DEATH IN JUNE saído com a Primavera de 2013.
Estamos no início de Junho, altura em que a banda celebra o seu trigésimo terceiro aniversário, agora festejado em relativa solidão, já que, oficialmente, Douglas permanece desde 1985 o “único membro do grupo” (por muito absurdo que isto possa soar). “The Snow Bunker Tapes” é a reprise integral dos temas que compunham o disco de formato igual lançado no Verão de 2010, “The Peaceful Snow”, para o qual contou com a participação omnipresente do pianista eslovaco Miro Snedjr.
The Peaceful Snow” tinha sido um disco diferente, um disco incaracterístico dos DEATH IN JUNE, todo ele tocado ao piano por um Miro Snedjr impecável, irrepreensível, perfeccionista também até ao quebrar das unhas, tal qual o seu patrono. A toada “lounge” que o som do piano de Miro conferia à poesia oblíqua e simbólica de Douglas Pearce, fez do álbum uma prova de fogo para recém-chegados e uma prova de fidelidade para os velhos amantes de D.I.J. (salvo-seja!), ou “altekämpfer” (veteranos de guerra), como Pearce gosta de chamar a quem o segue há décadas. Produzir um disco que vai em sentido divergente de uma carreira longa é um acto de coragem e pensamos que a grande maioria do público dos D.I.J. aceitou com grande alegria e apreço esta suave mudança, que imprimiu ainda mais inegável beleza às suas canções. Como se não bastasse, Miro regravou uma vintena de canções antigas em formato instrumental lounge, dando de bandeja a Pearce mais um motivo para facturar rendimento em nome do grupo.
Passaram-se entretanto três anos; não sabemos se Miro ainda é considerado por Douglas Pearce como membro honorário dos D.I.J., mas conhecendo o carácter algo efémero das colaborações que passam pelo crivo do fundador, não é improvável que nunca mais volte a figurar no line-up. Quer isto dizer que a vontade obsessiva de conduzir a sua carreira com irredutível marca pessoal pode ocasionalmente tornar-se factor de perda de oportunidade, para dar continuidade a uma boa ideia.
É compreensível até certo ponto – basta lembrar os tristes episódios passados com o austríaco Albin Julius Martinek, para dar razão ao cumprimento do aforismo popular “mais vale só que mal acompanhado”, mas mesmo assim, no caso de Miro Snedjr seria demasiado forte a irradicação total.
Antes de passarmos a fio os temas regravados em “The Snow Bunker Tapes”, há que ressalvar a acusação a Albin Julius – as confusões por ele provocadas e que prejudicaram bastante a vida aos DEATH IN JUNE e bandas que com eles tocavam ao vivo, não invalidam a qualidade dos discos em que colaborou, nomeadamente “Take Care and Control” e “Operation Hummingbird”, trabalhos de um interesse a toda a prova. Neste caso, foi mais a sua propensão para o dislate e disparate que arruinou a colaboração. Com o “cabo” Miro Snedjr, se o afastamento for definitivo, impõe-se no mínimo uma cruz de ferro de primeira classe.
Consubstanciando o que foi dito atrás, Douglas achou que estava na altura de libertar as gravações iniciais que teriam eventualmente servido de guia a Miro Snedjr para desenvolver as suas interpretações ao piano. Já que as Snow Bunker Tapes seguem o mesmo alinhamento, torna-se relativamente fácil fazer comparações com The Peaceful Snow.
Desde já, após a primeira audição integral chega-se a uma conclusão por demais evidente – se Douglas seguiu uma linha cronológica no alinhamento, então apercebemo-nos que, na sua origem, o álbum foi um “grower”, em que a qualidade das canções, dos seus arranjos simples e acabamentos, se foi apurando.
Dito isto, é também verdade que os temas do primeiro vinil do álbum se tornam algo frouxos perante a beleza e brilho conseguidos pelo pianista eslovaco em The Peaceful Snow. Não que estas versões à guitarra tenham algo em si que as afaste do habitual ritual que Douglas nos impõe, mas comparando com as versões de piano de “Murder Made History”, “Fire Feast”, “Peaceful Snow”, “Life Under Siege”, “A Nausea” e “Wolfrose”, há algo que falha, aparentemente apenas na qualidade de captação sonora, já que a versões totenpop de guitarra não passariam de demos retocadas com algum verniz. Mas não é só.
No entanto, o interesse intimista está lá todo, aquela sensação de reconforto transmitida com a segurança de quem tem a chave do bunker. Questionar-se-á o ouvinte do Café Europa – “Então, o disco é sensaborão?” Nada disso. É o famoso equilíbrio que Douglas gosta de impor, baseando-se no poder da verdade – ao colocarmos a agulha sobre as espiras iniciais de “The Scents Of Genocide”, damos de imediato conta de uma mudança na qualidade de produção e mais garra na reinterpretação. Aliás, o lado 3 é o ponto mais alto desta semi-reedição – seguem-se a fantástica versão totenpop de “Red Odin’s Day”, aqui sim, talvez ainda melhor do que pelas mãos de Miro ao piano, e também “My Company Of Corpses”, que pelo menos iguala a sua congénere de “The Peaceful Snow”.
No último lado, mantém-se este rigor nas terminais “Cemetery Cove”, “Our Ghosts Gather” e “Neutralize Decay”, temas em que a própria interpretação vocal de Douglas se torna progressivamente mais clara, involvente e mais alinhada com o velho álbum de há cinco anos, “The Rule Of Thirds”, disco anterior a “The Peaceful Snow”, de que este “The Snow Bunker Tapes” pretende mas não consegue fazer émula.
Dizermos que se trata de um lançamento falhado dos D.I.J. é um exagero – pretendia-se apenas fazer justiça a estes temas através do seu mais natural e previsível veículo: a voz, a guitarra e algumas percussões de aula de Educação Musical ao sábado de manhã. E nisso Mr. Pearce conseguiu mais alguns pontos para a sua caderneta paramilitar de songwriter esquivo e arredio.
2014 está à porta – e só o futuro o impedirá que este centenário da 1ª Guerra Mundial não traga surpresas na trincheira de “Herr LeutenantDouglas Pearce.
No final, com todas estas expectativas em jogo, enquanto os últimos versos de “Neutralize Decay” nos avisam de que se não neutralizarmos a decadência e podridão, ficaremos sem amanhãs, não podemos evitar um sentimento de que tudo está bem quando acaba bem. Só que ainda não acabou, nem nunca vai acabar. No filme de Spielberg, o actor Ralph Fiennes que se apropria da aura negra do comandante Amon Goeth, promete, a alguns dos prisioneiros, o seu perdão e, enquanto eles vão à sua vida no campo, passam-se alguns segundos de inquietude – de repente, a carabina soa lá do alto e um corpo cai com a cabeça esfacelada. O perdão de quem manda nunca é certo. Albin Julius sabe-o bem. Talvez Miro Snedjr passe no teste.
Texto: João Carlos Silva
Fotos: António Caeiro

1 comentário:

  1. Um preciosismo de burocrata de serviço público : "jhonn" era mesmo com dois "n" e com "h" antes do "o" - não era um "John" qualquer; aliás ele chamava-se Geoffrey Lawrence Burton, tendo depois mudado para Rushton. "Balance" foi o que sempre procurou em vida.

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